quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A força das expectativas e a expectativa do mundo actual

A expectativa constitui um dispositivo mental poderosíssimo. Não direi que supera o evento expectado mas altera-o decisivamente. Altera-lhe o sabor, o cheiro e metamorfoseia-o em algo diferente do evento e acto originais.

Uma pessoa que aufere um salário mensal de 100.000€ e no mês seguinte recebe apenas 50.000€ atribuirá a esse evento um valor completamente diferente daquele que atribui uma pessoa que recebe o salário mínimo e no mês seguinte recebe de uma raspadinha 50.000€. O evento original é exactamente o mesmo, receber 50.000€, mas esse mesmo evento experienciado pelo milionário é completamente diferente, antagónico até, daquele que é experienciado pelo usufrutuário mensal do salário mínimo e o que os diferencia de forma decisiva é exactamente a expectativa.

Isto não é novidade e várias são as correntes filosóficas, ou se não quisermos ir tão longe, as correntes de pensamento que incidem sobre esta força da expectativa e a pretendem controlar e manietar como forma de maximização do prazer retirado dos eventos experienciados ou como forma de minimização do sofrimento absorvido desses mesmos eventos, como o são o “Carpe Diem” ou o Niilismo, respectivamente.

A novidade digna de relato e o motivo que me leva a escrever sobre este tema consiste na extrapolação dessa força da expectativa dum campo pessoal e individual para um campo colectivo e do domínio público, dum campo meramente introspectivo para o campo político.

A publicação maciça de estados de alma, desejos e intenções, que até ao arrebatamento destes pelas redes sociais eram do foro íntimo e privado de cada um, transformaram a vivência e experiência de eventos individuais e pessoais em eventos colectivos e públicos.

Aludindo ao aqui prefaciado, esses mesmos eventos que antes eram do foro privado e agora extravasaram para o domínio público são fortemente condicionados pela expectativa que é gerada em torno desses mesmos eventos e se aliarmos a esta força da expectativa o apelo de mediatismo e sensacionalismo que a geração “FACEBOOK” persegue nos flashes das suas “selfies”, percebemos como um Donald Trump é eleito para presidente dos EUA. Os “millenials” perseguem o clímax da anti-expectativa, salivam por surpreender, ambicionam à originalidade dos seus “posts” e à sensação causada nos outros que é sempre maior consoante menor for a sua conformidade com as expectativas geradas. Poderia e deveria haver uma designação filosófica para esta corrente comportamental moderna e contemporânea que conjuga uma forma de niilismo perante todos os factores potencialmente perturbadores do clímax causado por um “carpe diem” surpreendente e não esperado, o único digno das “flashadas” das redes sociais.

Assim, quando a ignorância, racismo e sexismo de Donald Trump criam a expectativa de umas eleições pré-determinadas pela sua derrota ameaçando, dessa forma, o clímax de um “carpe diem” surpreendente ambicionado e perseguido, eis que esta geração das redes sociais exacerba o seu niilismo num bloqueio mental e intelectual a esses factores em defesa de um “WOW” final e do orgasmo cataclísmico de um “Carpe Diem” digno de milhões de posts e milhões de twits. 

Pergunto o que se falou de Donald Trump nas redes socias desde a sua vitória? Pergunto o que se teria falado de Hillary Clinton tivesse esta ganho? Aí está um bom motivo para a vitória de Trump…   


É por isso com agrado que sou confrontado com as expectativas do mundo actual nas vitórias da extrema direita em França, na Holanda e no seu ressurgimento um pouco por todo o mundo “desenvolvido”, munido que estou da crença nesta geração sedenta do surpreendente, do diferente, do choque da anti-expectativa digna de registo “postado” ou “twittado” com que alimenta o vício social da sua dependência sociológica.       

domingo, 27 de novembro de 2016

Adeus Fidel!

Fidel Castro foi homem de grandes paradoxos que à história caberá esclarecer (ou não) mas mesmo na morte foi controverso e não obedeceu aos cânones estabelecidos. Estes dizem-nos que a morte física precede a morte espiritual mas em Fidel Castro ocorreu o contrário e foi aquando da sua morte espiritual que dele me despedi, num Adeus que agora, na sua morte física, lembro...

Adeus Cuba!

Mas como em todo o personagem da magnitude que transcende a própria vida, a última palavra é e deverá ser dele:

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

E Trump é o novo líder do mundo "livre" e comandante supremo do mais avançado exército da história da Humanidade!

Quase todos os cronistas, analistas, politólogos etc etc tentam hoje forjar uma teoria socio-cultural, socio-economica, psicanalítica, filosófica, demográfica ou somente sociológica capaz de explicar e fundamentar a eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA.

Eu próprio julgo também já o ter feito, antecipadamente, quando dissertei sobre a A democracia da ignorância.

Mas agora é hora de olhar o futuro e nesse olhar tentar encontrar o optimismo que os apoiantes de Trump parecem nutrir..Talvez seja apenas uma questão de perspectiva...Tentemos pois, a bem da democracia, tentar entender a perspectiva dos apoiantes de simpatizantes de Trump, deixando um video pedagógico para o efeito:


sábado, 29 de outubro de 2016

O elogio de Schäuble à Geringonça!

Já tive oportunidade de, em textos anteriores, ilustrar o que julgo ser a visão para Europa, e o trilho que pretendem traçar rumo a essa visão, que os acuais decisores políticos europeus nutrem, cultivam e defendem acerrimamente.

Constituindo-se o PPE a família política que manda na Europa actualmente, constituída pelos seus tecnocratas de Bruxelas a mando da Ecofin de Schäuble e “familiares”, entenda-se da mesma família política, cedo se percebeu qual a ideia desta “família” para a sua Europa. Agastados com os “gaps” de produtividade entre os países da periferia europeia e os da Europa Central perpetuadores, face à impossibilidade de “manietação” cambial e monetária por contrária serem aos interesses do franco alemão e outras moedas que tal, de desequilíbrios financeiros cada vez menos bem recebidos pelos mercados financeiros, a actual elite governativa europeia esboçou um modelo de desenvolvimento europeu assente numa Europa a duas velocidades.

Esta Europa a duas velocidades caracteriza-se pela coexistência, dentro do espaço europeu, de dois modelos de desenvolvimento económico distintos; por um lado um modelo de desenvolvimento económico para os países do centro e norte da Europa e outro para os países da periferia. Se para os países do centro e do norte da Europa é defendido um modelo de competitividade assente em actividades de elevado valor acrescentado necessitadas de elevados índices de produtividade resultando, por isso, em níveis remuneratórios elevados e consequentes elevados poderes de compra e elevados níveis de vida para a população que se constitui a mão-de-obra desses países, para os países da periferia passou a ser defendido, por este PPE neo-liberal que manda actualmente na Europa, um modelo de desenvolvimento económico suportado por uma competitividade derivada da desvalorização do factor trabalho. Não possuindo os índices de produtividade dos países do centro e do norte, a estes países da periferia resta serem competitivos por via de praticarem níveis salariais mais baixos, degenerando num modelo de crescimento assente na desvalorização e precarização do factor trabalho conducente a mais baixos poderes de compra e à perda de nível e qualidade de vida da população desses países que constituem a sua mão-de-obra.

Esta é, segundo o ponto de vista da elite governativa europeia actual, a única solução viável de subsistência e sobrevivência dos países da periferia europeia. Assim, é com naturalidade que os representantes desta visão da Europa defendam, aplaudam, recomendem e receitem até medidas e políticas que conduzam à concretização dessa visão… Tudo o que contribua para mudanças estruturais no mercado laboral dos países da periferia no sentido da desvalorização do factor trabalho e à sua cada vez mais submissa dependência do factor capital (sob a forma sobretudo de Investimento Estrangeiro) é defendido, aplaudido e recomendado por estes senhores que pensam mandar e desmandar na Europa. É também com naturalidade que quando surgem agentes políticos com visões diferentes da destes, por exemplo governos de países periféricos que defendam para os seus países modelos de crescimento semelhantes aos do centro e Norte da Europa, reclamando políticas de educação, formação e qualificação susceptíveis de dotar as suas populações de índices de produtividade capazes de substanciar tais modelos de crescimento virtuoso e recusando medidas que visem somente a desvalorização e precarização do factor trabalho “substanciadoras” do modelo de crescimento pernicioso que lhes querem impor por conducentes à precarização das condições de vida da população que constitui esse factor trabalho serem, aí estes mesmos senhores reagem de forma antagónica e ao invés de aplausos e lisonjas, reagem com criticismo, reprovação e até provocação.


Assim, quando este “gang” de lobos de sobrenome Schäuble, que é o principal rosto sinistro da defesa e da imposição desta Europa a duas velocidades, refere que “Portugal estava a ser muito bem sucedido até ao novo Governo", tal afirmação apenas poderá ser percepcionada, por quem se preocupa com a defesa das condições de vida e do bem-estar da população portuguesa, como um enorme elogio à actual solução governativa, carinhosamente apelidada de “Geringonça”, e uma duríssima ofensa e crítica à anterior solução governativa, pretensiosamente auto-denominada de “Portugal à Frente”

domingo, 23 de outubro de 2016

Guterres à pesca de cherne em mar de tubarões…

Paradoxalmente, num país em crise financeira, económica e social, têm, nos últimos tempos, emergido grandes nomes para a ribalta da política internacional. Políticos que internamente não serviram para mudar a inevitabilidade da crise portuguesa, destacam-se agora em cargos de grande visibilidade no plano internacional. Vítor Constâncio como vice-presidente do Banco Central Europeu, António Guterres como Secetário-Geral da ONU e Durão Barroso como presidente não-executivo da Goldman Sachs (depois de já ter presidido à Comissão Europeia) são os casos mais sonantes. Os dois últimos, por terem já cruzado os seus caminhos em tempos idos, voltam a contar uma história interessante e reveladora se analisarmos o paralelismo dos seus trajectos políticos.

Tendo António Guterres ascendido ao mais alto cargo da diplomacia internacional, o de Secretário-Geral das Nações Unidas, releva saber, para o desempenho do seu cargo, qual o estado dessas nações unidas…? Que mundo vai António Guterres encontrar e nesse mundo quais os desafios prementes que lhe se apresentarão no caminho da sua missão? Sendo a sua missão a substância da sua nomeação, que desafios se colocarão ao ex-comissário para os Refugiados para levar a sua avante?

A nomeação de António Guterres para Secretário-Geral da ONU obedeceu essencialmente ao consenso de que o maior desafio que se coloca ao mundo actual e que de resolução política carece diz respeito à crise dos Refugiados. Quando se tratou de escolher o representante das nações unidas para lidar com este desafio do mundo actual, a questão que presidiu à escolha e que resultou na unanimidade da escolha de Guterres terá sido: quem será dos candidatos o mais competente para lidar com esta temática? A experiência acumulada de António Guterres enquanto alto comissário da ONU forneceu a resposta fácil que degenerou na supracitada unanimidade. Tem-se o homem certo para a missão certa na altura certa! Só não temos o mundo certo…

António Guterres, na sua missão humanitária e idealista esbarrará inevitavelmente naquilo que serão as pretensões e interesses de quem realmente manda no mundo. O que poderá fazer António Guterres quando as medidas que quiser implementar com vista à resolução humanitária da crise dos refugiados forem contrárias ao interesse material e estratégico dos países integrantes do Conselho de Segurança da ONU? O que poderá fazer António Guterres quando quiser convencer países e nações (das unidas a que preside) a empreender iniciativas que sejam contrárias aos interesses dos países do Conselho de Segurança da ONU, de quem dependem económica, financeira e militarmente? Muito pouco ou quase nada…Neste nosso mundo capitalista de último reduto, poderá fazer mais Durão Barroso enquanto “chairman” da maior entidade financeira mundial do que António Guterres enquanto líder da maior entidade diplomática mundial. Será muito mais influente numa mesa de negociações com os líderes dos países que integram o Conselho de Segurança da ONU ou o G20 (os tubarões do mar diplomático em que Guterres se vê agora forçado a nadar) Durão Barroso do que António Guterres. Terá, neste mundo nosso, Durão Barroso muito mais “leverage” negocial para com esses países do que António Guterres, por aquilo que ambos representam; enquanto que Durão Barroso poderá negociar com esses países condições de financiamento, presença e intervenções dominantes em mercados financeiros mundiais capazes de conferir posições dominantes na negociata mundial, representando assim uma autoridade financeira e materialista, António Guterres apenas poderá apelar ao respeito pelos valores e Direitos Humanos, cartilha cuja defesa e propriedade são da entidade que lidera com o poder que lhe é conferido pelos países do mundo, representando desta forma uma autoridade moral e ética…E entre uma autoridade financeira e material e uma autoridade moral e ética, mais vale António Guterres correr a pedir ajuda a Durão Barroso se quiser mudar o quer que seja neste vosso mundo de último reduto.

E é neste trajecto destes dois políticos nacionais, que se conta muita da verdade do mundo actual…António Guterres foi um político que por altos valores éticos e de dignidade política renunciou ao seu cargo de primeiro-ministro, quando pressentindo o descontentamento de quem o elegeu com a sua governação pôs o seu cargo à disposição, não se escusando no entanto de ir à luta política…Foi-o e perdeu com Durão Barroso que, tendo assumido um compromisso com o eleitorado português de o governar por 4 anos, assim que teve uma melhor oportunidade de progressão na carreira, quebrou esse compromisso fundamental com o povo que o elegeu, fazendo da sua candidatura a primeiro-ministro português uma monumental mentira. Catorze anos depois, Durão Barroso atingiu o pináculo da sua carreira de oportunismo e sagacidade política enquanto que António Guterres alcançou o ponto mais alto da sua carreira de idealismo e integridade política e o facto de ter de ser este último a pedir favores ao primeiro se quiser resultados no desempenho da sua função, diz muito do mundo em que vivemos.


E é por ter enorme respeito pelos valores e ideais emanados do percurso político de António Guterres mas também a consciência deste mundo em que vivemos que me resta desejar a maior sorte a António Guterres e que Deus o acompanhe! Mas como diria Tom Waits:          

sábado, 15 de outubro de 2016

O nosso mundo “Trumperiano”

Poucas candidaturas presenciais e iniciativas políticas têm o condão de, numa forma tão cristalina e reveladora, reflectir a realidade e o mundo em que se propagam como a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América.

A popularidade granjeada e conquistada pela ignorância, pela estupidez, pelo preconceito, pela vaidade narcisista e pela ganância avassaladora caída em desgraça numa subjugação ao moralismo hipócrita e ao puritanismo demagogo emanados de um catolicismo torpe e bafiento é uma representação perfeita deste mundo em que vivemos e dos valores e princípios que lhe subjazem.

Quando Trump ameaça construir um muro na fronteira dos EUA com o México para impedir os mexicanos, a quem apelidou de ladrões e violadores, entrar nos EUA, Trump sobe nas intenções de voto e na simpatia e empatia geradas com o seu eleitorado.

Quando Trump exige a Barack Obama que exiba a sua certidão de nascimento para provar que nasceu nos EUA só porque este último é preto e tem as orelhas grandes, Trump sobe nas intenções de voto e na simpatia e empatia geradas com o seu eleitorado.

Quando Trump, que defende a produção e os produtos norte-americanos, é confrontado com o facto de ter feito fortuna com produtos fabricados por mão-de-obra infantil explorada no Vietname, Tailândia, Cambodja etc., Trump sobe nas intenções de voto e na simpatia e empatia geradas com o seu eleitorado.

Quando Trump, que se gaba de ser um dos homens mais ricos dos Estados Unidos e faz da ostentação dessa riqueza um estilo de vida, admite não pagar impostos há mais de 20 anos, Trump sobe nas intenções de voto e na simpatia e empatia geradas com o seu eleitorado.

Quando Trump, numa devassa à sua privacidade, vê exposta uma conversa privada em que, num tom jocoso se vangloria dos seus avanços sexistas numa demonstração de fanfarronice machista que mais de 90% dos homens já deve ter ostentado pelo menos uma vez na sua vida em “conversa de gajos”, aí cai o Carmo e a Trindade e nem a esposa nem o candidato a vice-presidente ousam relativizar a questão, demarcando-se de Trump, como todo o partido republicano e grande parte do seu eleitorado, numa ejaculadora afirmação do seu moralismo e puritanismo imaculados que nem a virgem Maria, afundando nessa exclamação “catolicista” a popularidade de Trump e matando, à partida, as suas hipóteses de eleição enquanto Líder do Mundo Livre.

Nesta ascensão e queda de Trump encontra-se muito da genuína génese das pessoas que fazem deste um mundo “Trumperiano” e que adoraria ilustrar com uma citação do mais recente nóbel da Literatura mas que, por falta de conhecimento aprofundado da sua obra literária cantada, não o conseguirei fazer…Ao invés, e por também achar que mais se apropria e adequa ao pretendido, deixarei essa ilustração citada a cargo, não do respeitadíssimo e venerado cantautor mas do bêbedo e putanheiro poeta Charles Bukowski:  

   

domingo, 11 de setembro de 2016

A força das circunstâncias e a circunstância do mundo actual: Refugiados “Breaking Bad”

Já defendi, em textos anteriores, o que julgo ser a necessidade de intercalar a típica abordagem financeira e economicista a fenómenos da nossa realidade com uma abordagem filosófica e humanista; referi essa necessidade quando abordei as questões do Terrorismo e dos Refugiados. E é no âmbito dessa crença que hoje, para vos falar novamente de Refugiados e Terrorismo, me auxiliarei, não de um economista ou de um politólogo mas de um argumentista de televisão, Vince Gilligan, criador da minha série favorita “Breaking Bad”.

Em “Breaking Bad”, Vince Gilligan conta-nos a história de um professor de Química do Secundário, de meia-idade a quem é diagnosticado cancro de pulmão, inoperável e com uma validade de 2 anos. Walter White, o professor, é pai de um adolescente de 15 anos com doença de Paralisia de Bell e encontra-se a aguardar um segundo filho, uma menina que se chamará Holly, e que não conhecerá o pai por mais de 2 anos. Com um seguro de saúde miserável, num país que não sabe o que é o Serviço Nacional de Saúde, Walter White é forçado pela esposa grávida a aceitar uma plano de tratamento melhor mas que não é coberto pelo seu seguro de professor. Mesmo trabalhando horas extra numa oficina de lavagem de carros onde, para escárnio adolescente, lava os CHEVROLET dos seus alunos, Walter White não consegue reunir os fundos para pagar o tratamento de qualidade que a sua mulher o obriga a atender. Não só isso mas sente ainda estar a consumir, inutilmente, recursos que deveriam ser aplicados no futuro dos filhos que deixará órfãos. A esposa pede para que o seu marido aceite a ajuda oferecida por ex-colegas de faculdade que fizeram fortuna com empresas de investigação química e para quem pagar um tratamento oncológico de top seria uma mera ninharia, afinal no mundo em que vivemos é de incomparável mais-valia quem investe capital financeiro numa empresa do que quem investe capital humano na educação e formação dos homens e mulheres de amanhã. Estranha hierarquização de valores esta…E é também por causa desta hierarquia de valores que vigora neste mundo nosso, a que chamamos desenvolvido, que Walter White preferirá a alternativa á solidariedade e à compaixão ofertadas e enveredará pela via solitária, orgulhosa e egotística da auto-suficiência. É que o individualismo “smithiano” não impacta somente na organização socio-económica da sociedade, ele deturpa e distorce os valores e princípios em que essa mesma sociedade se substancia e entre os sentimentos de piedade e compaixão e os de repulsa e ódio, o indivíduo contemporâneo optará, regra geral, ser alvo dos segundos. Assim aconteceu com Walter White, estereotipo do homem actual, que ao invés de aceitar a generosidade e caridade dos seus amigos de faculdade com mais sucesso individual do que ele, optou, para fazer face às circunstâncias da sua vida, por “cozinhar” metanfetaminas e tornar-se traficante de droga; preferiu a repulsa e o ódio à compaixão e piedade. E é enquanto barão da droga que Walter White não só ganhará o dinheiro suficiente para o seu tratamento oncológico como em dois anos de vida criminosa ganhará o suficiente para garantir o futuro financeiro dos seus filhos, algo que não conseguiria com uma vida inteira e leccionar química numa escola secundária…É a vender droga que mata e traz miséria e a matar mesmo que experiencia comportamentos de respeito e reverência à sua pessoa quando até então, enquanto mero professor de secundário, o máximo a que aspirara fora à condescendência dos outros. Walter White transforma-se, sob a força das circunstâncias da sua vida e sob a circunstância dos valores e princípios que é o mundo actual, num traficante de droga, homicida e criminoso e nós, espectadores deste mundo actual, compreendemos, empatizamos e vangloriamos até essa transformação. Fazemo-lo porque compreendemos a motivação circunstancial que lhe antecede e sob esta tabela de valores que vigora nesta Babel capitalista, quem pode não sentir que faria o mesmo que Walter White fez? Com um filho de 15 anos, uma bebé a caminho, diagnosticado cancro e dois anos mais de vida, quem não compreende a opção por um caminho destrutivo de revolta auto-suficiência e afirmação individualista? Todos nós o compreendemos e nos identificamos com ele e com as suas escolhas, e daí também o sucesso retumbante da série televisiva…

Mas este é um espaço de debate político e não crítica televisiva. Extrapolando então para a nossa realidade política e incidindo sobre o fenómeno de resolução política que julgo ser o mais premente da actualidade, qual o contributo de Vince Gilligan para a questão e crise dos refugiados. O seu contributo consiste em ter conseguido, na sua série “Braking Bad”, estabelecer, magistralmente, um nexo de causalidade entre as circunstâncias do homem actual e o seu comportamento e quando pensamos nos refugiados e aplicamos esse nexo de causalidade, somos forçados a perguntar: O que farão estas crianças, que não morrendo com as balas na Síria nem afogadas no mar Egeu, são atiradas para campos de miséria onde em condições desumanas são forçadas e definhar por terem ousado fugir da guerra? O que acontecerá a estas crianças que se vêem forçadas a prostituir para fugir destes campos refugiados do humanismo? A opção por uma via de revolta auto-suficiência ao invés da piedade dos seus carrascos, parece-me uma resposta óbvia e para a grande maioria delas a via da afirmação do seu individualismo, destratado e espezinhado enquanto crianças, esgotar-se-á na sua opção pelo terrorismo, cujos sentimentos de ódio e repulsa preferirão aos de piedade e compaixão daqueles a quem nunca esquecerão o desprezo e indiferença de quando eram frágeis e vulneráveis. Pergunto com quantas destas crianças quando, daqui a 15/20 anos fizerem explodir um centro comercial e ou ignitarem uma bomba numa qualquer estação de metro europeia, nós nos empatizaremos? Com quantos delas nos identificaremos? Quantas delas vangloriaremos quando passarem nos noticiários as consequências macabras das circunstâncias das suas vidas nesta circunstância que é o mundo actual? Sou levado a crer que os futuros eventuais autores desses atentados terroristas não terão a sua cara estampada em tantas t-shirts ou canecas de café como Heisenberg, a não ser que algum realizador de cinema se lembre de recriar no grande ecrã das salas de cinema as circunstâncias das suas vidas, esquecidas nos pequenos ecrãs dos noticiários das nossas salas de estar.

Nota positiva ao nosso primeiro-ministro, que levou para a Cimeira da periferia (convidado por Alexis Tsipras), propostas de medidas e políticas para a integração não só humanitária mas humana dos refugiados. Poderia ter escolhido uma miríade de temas e um sem fim de propostas a levar a debate neste pequenos concílio…Talvez medidas anti-austeritárias que afectam sobretudo os países a participar nesta reunião…Mas não, optou por levar propostas para a integração dos refugiados e ao fazê-lo define claramente o que para ele deverá ser a prioridade da actuação política, que entre uma crise financeira e uma crise humana deverá recair primeiramente sobra a que afecta a humanidade de milhões de pessoas. Com isso identifico-me, empatizo e vanglorio!



“Chemistry is the study of matter but I prefer to see it as the study o change…”, Walter White, Breaking Bad

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Idealismo VS Pragmatismo

Na minha tentativa de vos desenhar o rosto, o corpo e os membros do Capitalismo de Último Reduto que é este Frankenstein da sociedade contemporânea e “desenvolvida”, esbocei os seus traços marcantes, nomeadamente a sua génese e maculada concepção, a sua manifestação e exacerbação e a sua alma-mater aglutinadora de uma lógica irresistível. Em todos esses traços, como um cunho de artista de génio, existe a forma única de “pincelar”, de fazer tocar o pincel na tela que diferencia aquele artista de todos outros e o torna único. Assim é com o Capitalismo de Último Reduto. O Capitalismo de Último Reduto é o artista maior da era contemporânea; pega no seu pincel que é a Finança e esboça na tela que é o mundo actual a sua obra-prima e o traço único que o diferencia, a forma de fazer tocar o pincel na tela que o torna único e o diferencia dos demais é o pragmatismo.

Se a submissão ao primado financeiro se constitui a filosofia, a matriz e a alma do Capitalismo de Último Reduto, o pragmatismo assume-se como a lógica dessa filosofia, a sequência da matriz e a religiosidade dessa alma pragmática do Capitalismo de Último Reduto.

A elite política da actualidade não passa de praticantes mais ou menos forçados deste pragmatismo que condena a sociedade contemporânea à reclusão neste Castelo Kafkiano em que vivemos. Se no Castelo reina a abundância e prosperidade vivemos felizes e contentes, se nele passa a grassar a fome e a miséria, protestamos barafustamos e maldizemos mas nunca ousamos abandonar o Castelo e nunca ousamos abandonar o Castelo porque pragmaticamente sabemos, porque nos foi dito, que fora dele existe um mundo selvagem de criaturas ferozes que nos despedaçaria caso ousássemos pôr um pé fora do Castelo. Assim é o Mundo Actual, onde o pragmatismo parece ter subjugado o idealismo a uma quarentena indefinida. Os nossos políticos conduzem a política do “tem de ser” e o aparatos mediático que à volta destes gravita (órgãos de comunicação social, comentadores e analistas políticos e fazedores de opinião de todo o género, etc.) esforça-se para nos dizer que se assim não for vem a calamidade, o apocalipse, o Mundo Selvagem fora do Castelo.

São várias as manifestações na realidade política que atestam a supressão do idealismo pelo pragmatismo e o reino incontestado deste último como religião dominante e unitária na condução política deste Capitalismo de Último Reduto, que é o que governa as nossas vidas actuais. Destas, referirei apenas duas para que, a título de exemplo, melhor se perceba a ideia que estou a tentar veicular.

Barack Obama e a presidência dos EUA - Barack Obama conseguiu a eleição para presidente dos Estados Unidos da América no seguimento de uma campanha movida, alimentada e exponenciada por um Idealismo que culminou no seu slogan vitorioso “Yes We Can” (estaria Barack Obama a dizer que sim, que conseguiríamos abandonar o Castelo pragmático e burocrático em que livremente estamos presos?). O idealismo revelado associado à inegável capacidade retórica e carisma de Barack Obama valeram-lhe inclusive, antes de qualquer acção presidencial, o Prémio Nobel da Paz, tal não fora a capacidade mobilizadora do Idealismo pregado. No entanto, abandonado o palanque de discursos e sentado na Casa Branca, cedo o Obama idealista cedeu lugar ao Obama pragmático e apesar de alguns aspectos positivos a nível doméstico, como a implementação de um Serviço Nacional de Saúde, a verdade é que os dois mandatos de Obama emanam do manual típico da política do “tem de ser”, senão vejamos:
- Wall Street e a Crise Financeira de 2008: O Barack Obama campanhista e idealista era duro com as libertinagens e devaneios destes banqueiros de Investimento desregulados e gananciosos, prometendo punições duras para com estes e políticas que garantissem que tais acções alimentadoras desta ganância destruidora nunca mais voltassem a ser possíveis no futuro, fazendo alinhar as sua posição com a de um dos mais severos e duros críticos de Wall-Street, Paul Volcker, que muitos acreditavam ser o próximo Secretário do Tesouro caso Obama ganhasse as eleições presidenciais. Já o Barack Obama presidente e pragmático, promoveu uma reunião amigável entre os maiores banqueiros de “Wall-Steet”, onde ficou decidido amigavelmente que nenhuma punição deveria ser aplicada aos senhores de Wall-Street e que, ao invés, seriam ainda libertados mais fundos estatais se destes os feudais de Wall-Street necessitassem; a reunião foi promovida pelo novo Secretário do Tesouro, Timothy Geithner, anteriormente presidente da Reserva Federal de Nova Iorque e um dos poucos defensores dos banqueiros de Wall-Street aquando da crise financeira. Porquê? Porquê esta mudança? Confrontado com a crise económica que grassava nos EUA e a necessidade imperiosa de uma retoma económica, Obama sabia e foi-lhe feito saber que tal retoma e recuperação não seriam possíveis sem um sector financeiro forte e saudável, pelo que punir e ostracizar esse mesmo sector seria contraproducentes para a pretendida retoma económica. Dividido entre fazer o deveria ser feito e o que teria de ser feito, Obama optou pelo que teria de ser feito para que a economia recuperasse, a sangria de empregos estancasse, e os trabalhadores norte-americanos voltassem a conseguir pôr pão em cima da mesa das suas famílias. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se por fazer o que deveria ter sido feito.
- Guantanamo e o Terrorismo: o Barack Obama campanhista e idealista prometeu encerrar a Prisão de Guantanamo, que considerava ser uma mancha no rosto dos EUA, revelando que a luta contra o terrorismo não poderia ser feita a qualquer custo e que se assim fosse, a batalha contra esse terrorismo estaria à partida perdida, pelo simples facto que o Terrorismo conseguira comprometer e corromper os valores, princípios e formas de actuação das sociedades desenvolvidas. Já o Barack Obama presidente e pragmático não só não encerrou Guantanamo como vai para a história como o grande impulsionador na utilização de “drones”, licença para matar à distância, na luta contra o terrorismo. Porquê? Porquê esta mudança? Ao Obama recto dos palanques de discurso, foram entregues documentos que provavam A + B que os interrogatórios conduzidos em Guantanamo providenciavam a recolha de informação que impossibilitava a concretização de inúmeros atentados terroristas; foi ainda feito ver ao presidente americano que a utilização maciça de “drones” seria a forma de efectuar raides de combate ao terrorismo que menos casualidades humanas (“human casualties”, mortes de humanos) provocaria. Sentado agora na Sala Oval, a rectidão de Obama cedeu a uma curvatura de comprometimento com o que teria de ser feito para salvar vidas humanas. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se por fazer o que deveria ter sido feito.  

 Alexis Tsipras e a Crise Grega – mergulhada numa profunda Crise Financeira, a Grécia, bastião pioneiro da democracia, via-se agora ostracizada, humilhada e vilipendiada pelos seus “parceiros” europeus que desta exigiam medidas atentatórias da dignidade humana em ordem a libertar fundos para satisfazer o seu serviço de dívida, em grande parte respeitante a credores que são senão grandes Entidades Financeiras responsáveis pelo início da crise que agora assolava a Grécia. Fartos destes abomináveis insultos à sua dignidade, o povo grego escolheu para seu líder o líder idealista do Syriza, Alexis Tsipras, que prometera fazer frente ao “bullying” da União Europeia e a estes bater o pé. O idealista Alexis Tsipras, já presidente, e fazendo jus ao legado democrático do país que representa, marcou referendo para perguntar ao seu povo se deveriam ou não assinar o acordo das instituições burocráticas ditadoras da austeridade vivida na Europa, o que no fundo equivalia perguntar, face às reacções chantagista e condicionadoras da União Europeia a este referendo, se os gregos pretendiam ou não continuar na União Europeia. Contados os votos, mais de 60% do povo grego corroborou o idealismo do seu líder e disse NÃO às pretensões austeritárias da Europa. Pensou-se que seria desta que veríamos no cenário político mundial o idealismo sobrepor-se ao pragmatismo; existia um líder idealista de um partido idealista e com o apoio maioritário do seu povo…Desconfundamo-nos! Depois de vários apelos ao seu pragmatismo, que incluiu, inclusive, um telefonema do ex-idealista Barack Obama, Alexis Tsipras lá cedeu e na sua cedência ao pragmatismo, mandou embora quem persistia no seu idealismo (vide Yanis Varoufakis), convocou eleições antecipadas, reformulou o seu partido de extrema para moderado e aplicou austeridade, a acordada e a não acordada? Porquê? Porquê esta mudança? Ao idealista Alexis Tsipras foi feito ver o que a não aceitação das condições de resgate acarretaria para o povo grego; a saída da União Europeia e o fim do apoio encapotado Banco Central Europeu significariam o colapso o sector financeiro grego que degeneraria num colapso económico da Grécia, que resultaria por seu lado na pobreza, na fome e na miséria do povo grego e foi assim que o já pragmático Alexis Tsipras fez o que tinha de ser feito. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se por fazer o que deveria ter sido feito. 


Embora a adopção do pragmatismo em detrimento do idealismo pareça ser, face aos exemplos supra referidos, inteiramente justificados, dever-se-á olhar para o quadro maior que é a Obra do Capitalismo de Último Reduto e não olhar somente para traços e esboços do mesmo, libertando-nos dos grilhões desta lógica sequestradora e pragmática para assim com maior isenção se poder apreciar se esta sobreposição do pragmatismo face ao idealismo é realmente virtuosa ou viciosa. Para o fazer
dever-se-á perguntar que mundo é este, que obra é esta que está ser pintada com pinceladas de pragmatismo? É uma obra boa, agradável ou, ao invés, causa desconforto, insatisfação, é uma obra má? A generalidade das pessoas, que não são tão parvas como se possa supor, parece ter encontrado a resposta e a votação constante em candidatos que fazem do idealismo a sua retórica é demonstração dessa resposta. O problema consiste no facto desses candidatos idealistas, quando confrontados com a máquina burocrática e tecnocrata do poder, se transformarem invariavelmente em líderes pragmáticos.

sábado, 30 de julho de 2016

Auschwitz XXI

No outro dia visitei Auschwitz.

Era uma quinta feira de manhã nebulosa quando a carrinha Mercedes preta de vidros esfumados parou junto ao hotel onde me hospedara para recolher os hóspedes deste interessados em nesse dia visitarem o antigo campo de concentração nazi. Tendo entrado quatro pessoas no dito veículo de marca germânica, dois casais de idade grisalha que se encontravam hospedados no Hotel” Kossak”, dirigi-me ao condutor do mesmo questionando-o se aquele seria o veículo que me conduziria a Auschwitz, ao que me respondeu que não, que dali seriam apenas quatro pessoas a transportar. Após consultar com a recepcionista do hotel e desta ter confrontado o motorista da carrinha, parecia que afinal eram cinco os hóspedes do Hotel “Kossak” a visitarem Auschwitz nesse dia. Foi então que o motorista do Mercedes, loiro de olhos claros com uma barbita imberbe de 4 dias, me convidou a sentar à frente, ao seu lado no lugar de passageiro, informando que faltaria somente passar por mais um hotel antes de rumarmos ao destino pago da nossa romaria. O carro estava já praticamente cheio de visitantes turistas de outros hotéis de Cracóvia. Tendo recolhido os últimos turistas a transportar o nosso guia automobilizado, inseriu no sistema audiovisual do automóvel um DVD com um documentário sobre Auschwitz. E foi assim, entre relatos de sobreviventes de Auschwitz entrecortados com gargalhadas do condutor que a meu lado amiúde ria e barafustava para o seu telemóvel, que cheguei a Auschwitz.

Chegado a Auschwitz, a quantidade de autocarros turísticos estacionados e a quantidade de máquinas fotográficas pendendo de pescoços escaldados de vermelhões típicos de turistas incautos, fez-me questionar se não estaria numa qualquer Disneylândia, uma Disneylândia negra e macabra, que atrai tanto como a colorida e alegre em Paris. Contornando a enorme fila para a entrada de Auschwitz I, afinal nós que pagámos uma visita com guia parecíamos ter mais direito a visitar o macabro do que os outros que desembolsaram menos Zlotys, fomos apresentados pelo nosso condutor àquela que seria a nossa guia para o dia, que nos ofereceu uns “phones” através dos quais, após colocados nos nossos ouvidos ávidos de turistas, poderíamos ouvir todas as indicações, explicações, contextualizações e peculiaridades com que a nossa guia nos guiaria por Auschwitz. Foi-nos explicado que este era Auschwitz I, o primeiro existente do enorme complexo de Auschwitz e o primeiro a ser usado e aproveitado pelos nazis para aprisionamento dos trabalhadores forçados que ali morreram ou trabalharam até morrer; a visita a Auschwitz II – Birkenau (o Auschwitz que estamos habituados a ver nas televisões e nos filmes da 2ª Guerra Mundial, e portanto a grande atracção turística de Auschwitz) ficaria para a parte da tarde. Por ora visitaríamos este complexo que fora o primeiros a ser usado para extermínio em massa de judeus, entre outros.

À entrada de Auschwitz I, somos agraciados com a placa de boas vindas onde se lê “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”). Ao longo dos vários edifícios protegidos por arame farpado electrificado vamos sendo confrontados com os vários episódios que compõem esta verdadeira narrativa do mal…Por entre o trabalho escravo, o tratamento desumano, as torturas e a matança em massa, jamais me esquecerei da fotografia de um menino de 2 anos alvo das experimentações do Dr. Josefe Mengele, também conhecido por Anjo da Morte ou Dr. Morte. Nessa foto, a criança, claramente desnutrida e maltratada, não grita, não berra nem se desfaz num esgar de dor…Não, essa criança limita-se a, com uma única lágrima vertida no seu rosto, olhar-nos numa contemplação onde revela o fim de tudo, esclarecendo-nos com o seu olhar a possibilidade infinita da maldade e crueldade humanas. Nessa mesma sala onde o olhar dessa criança “tratada” pelo Dr. Morte matou algo em mim que jamais conseguirei ressuscitar, encontrava-se em pessoa uma sobrevivente de Auschwitz; sentando-se ao lado de uma foto sua de quando tinha dez anos, explicou-nos aquela foto, dizendo que foi tirada pelo exército vermelho no dia seguinte à libertação e de como estes a tinham feito vestir o fato de prisioneira para as referidas fotos, mesmo referindo que as crianças não andavam vestidas como prisoneiras. Na foto, pousava com a sua irmã gémea (os alvos das experimentações do Anjo da Morte eram preferencialmente gémeos, dos quais o Dr. Mengele tentava apreender o segredo genético para a reprodução em massa, o qual replicados ao povo germânico, potenciaria a desejada repopulação avassaladora da raça ariana). Depois de contar alguns aspectos daqueles nove peculiares meses da sua infância, esta senhora octogenária surpreendeu ao revelar que tinha perdoado os nazis, mas que o havia feito por ela, não por eles…De seguida, e para gáudio de muitos dos turistas do macabro que comigo partilharam esta visita, encaminhámo-nos para a primeira câmara de gás a ser usada na matança em massa perpetrada pelos alemães da década de 40. Foi, a seguir à foto atrás mencionada, o segundo momento a me causar maior impressão nesta visita a Auschwitz; pisar aquele chão, aquele mesmo chão onde há cerca de 75 anos pessoas inocentes, alheias ao facto de ali estarem nuas com tanta outra gente, com os seus filhos bebés ao colo e olhar para cima e ver as aberturas por onde era libertado o infame gás, é uma sensação indescritível, uma azia e apatia sentimental que procura desesperadamente no relato que nos entra pelos ouvidos qualquer indício qualquer coisa que atenue aquele horror com que se é confrontado mas que nada encontra a não ser mais detalhes da ilustração da fealdade humana. À saída do referido campo de gás, é-nos impossível não regozijar quando a guia indica que ali, mesmo à frente do campo que tanta gente matou, foi enforcado após condenado o primeiro governador de Auschwitz Rudolf Höß.

Terminada a primeira parta da visita, era agora hora de rumar à nossa carrinha que nos transportaria para a segunda parta da visita, a grande atracção “Auschwitz II – Birkenau”. Antes, tive tempo ainda para engolir o meu almoço, um cachorro quente adquirido na barraca de Kebab á frente do hotel donde partira, prevenido que estava para os preços turísticos de Auschwitz.

Chegados a Birkenau, é impossível ficar indiferente à sua entrada icónica, com o portão guardado por vários pontos de vigília e ao lado a entrada para os comboios que de toda a Europa chegavam transportando condenados ao Holocausto. Na imensidão verdejante dos campos que compõem Auschwitz II (é vinte vezes maior que Auschwitz I), foi-nos explicada a velha eficiência alemã: os comboios chegavam e paravam a meio do ferrovia inserida no complexo, sendo aí efectuada a imediata triagem dos que, estando em condições para trabalhar seguiam para os seus “aposentos” e dos que, não estando em condições para trabalhar, maioritariamente crianças, mulheres e idosos, percorriam o resto da ferrovia até ao fim daquelas planícies verdejantes para aí conhecerem o fim da sua viagem que se constituía nas câmaras de gás e respectivos crematórios onde as cinzas da memória queimam a história humana. Depois de visitar as ruínas das câmaras de gás e crematórios fomos convidados a conhecer um exemplo dos “aposentos” onde os aptos a trabalhar ansiavam para que os seus no fim da planície se encontrassem melhor do que estes. Estes “aposentos”, muitos deles originalmente construídos como estábulos para albergar até 40 cavalos das SS, serviam de alojamento para mais de 200 prisoneiros, que em estrados de 4m por 4m e com diferença de 1m para os estrados de cima e em baixo, repousavam, em grupos de 5, a força de trabalho de tantas empresas alemãs, muitas delas ainda hoje existentes, na altura florescentes e crescentes em pujança com tão afincada e dedicada mão-de-obra. Foi depois de visitar os aposentos dos habitantes de Birkenau que foi dada como terminada a visita; era hora de voltar ao nosso carro onde o nosso motorista nos esperava para nos levar aos nossos aposentos, que o fez num caminho de cerca de uma hora enquanto bebia uma cerveja em copo de plástico adquirida em Birkenau.


Chegado ao meu quarto de hotel, e enquanto digeria aquela visita, o cachorro no meu estômago latia por soltura. Sentado na latrina do hotel “Kossak”, tentava confortar-me dizendo de mim para mim que tal atrocidade ocorrera há mais de 70 anos e, apesar de historicamente tal não ser muito, vivemos hoje num mundo completamente diferente em que o acesso massificado à cultura de informação impedirá tais manifestações de maldade e crueldade voltar a ocorrer. Mais reconfortado, puxei do meu Smartphone, onde na minha app do “Publico” li que o ministro das finanças alemão Wolfgang Schauble pedia a aplicação de sanções a Portugal e adivinhava novos pedidos de resgate para Portugal, numa tentativa de condicionar a condução da política nacional interna, no que apenas pode ser descrito como uma diplomacia abusiva e invasiva da soberania nacional; numa notícia logo abaixo fui confrontado com as declarações do cada vez mais popular candidato a líder do mundo livre, Donald Trump, nas quais o homem laranja da peruca loira prometia construir um muro ao longo de toda a fronteira com o México e garantia que faria os mexicanos pagar por esse mesmo muro. Percorrendo a página do Público, li como um homem, supostamente ligado ao terrorismo DAESH, se lançou com um camião numa imensa multidão em Nice, matando e trucidando indiscriminadamente. Li ainda como um outro homem, rapaz de 19 anos, entrou num comboio na Alemanha com um machado e começou a atacar para matar os seus passageiros. Ainda na Alemanha, em Munique, constava numa notícia paralela à anterior, um ataque terrorista a um centro comercial tirara a vida a nove pessoas. De volta a França, li como homens invadiram uma igreja na Normandia, fizeram cinco reféns incluindo um padre de 84 anos, que obrigaram a ajoelhar-se para depois o degolarem.

Cansado das notícias do macabro, decidi consultar um artigo de opinião; nesse artigo, o seu autor argumentava, sustentando esse argumentário empiricamente, que uma das principais consequências do terrorismo islâmico na Europa passará por um crescimento das forças políticas de extrema-direita, simpatizantes dos ideias xenófobos e racistas em que se alicerçou a construção de Auschwitz.

Depois de percorrer os meus olhos pela actualidade, eles que cansados estavam da visita desse dia ao passado macabro, não só os despojos vadios da minha tripa se perderam num esgoto de Cracóvia, com eles foi também esvaziado de mim o falso senso de conforto com que tentava superar Auschwitz.

 “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.”, George Santayana, pseudónimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás  

sábado, 25 de junho de 2016

BREXIT 1 – 0 CAPITALISMO DE ÚLTIMO REDUTO

A surpresa do BREXIT!
Este poderia ter sido o outro título do presente texto mas, no espírito do Euro 2016, optei pelo “look” à la Placard… A verdade é que o “outcome” (reparem que estou a abusar propositadamente dos inglesismos neste texto, será que ainda o posso fazer?) do referendo britânico se constituiu numa surpreendente e inesperada notícia. Nunca acreditei que o SIM à saída pudesse ganhar. Estava tão crente que a permanência do Reino Unido seria a opção mais votada que contemplei seriamente publicar o meu “post” bi-semanal antecipadamente de forma a revelar o meu prognóstico da vitória do BREMAIN. Bem hajam as obrigações profissionais e parentais a evitarem embaraços futuros… Mas porque estava eu tão convicto que a permanência do Reino Unido na União Europeia seria a opção vencedora?

Já aqui publiquei vários textos dedicados ao que designo de Capitalismo de Último Reduto e nessa caracterização extensiva denunciei aquilo que julgo ser uma das principais matrizes deste modelo socio-económico que se constitui na submissão de tudo ao primado financeiro, democracia incluída (vide Capitalismo de Ultimo Reduto – o Grande Sequestrador). Desta supremacia do primado financeiro brota uma civilização de comprometimento com esse mesmo primado, amorfa, comodista e receosa de toda e qualquer alteração ao “status quo” vigente. São várias as manifestações na realidade política e social que atestam a capacidade deste Capitalismo de Último Reduto vergar e tornar sem ímpeto toda uma civilização:
- em Wall-Street quando inicialmente exigíamos “sangue” pelos devaneios e libertinagens dos filhos pródigos deste Capitalismo de Último Reduto, acabámos por ser convencidos que as mudanças que exigíamos ainda seriam piores do que aguentar o que já temos. Impor a estes Bancos de Investimento Especulativo restrições ao seu “business as usual” conduziria a constrangimentos na sua capacidade fazer dinheiro que em última análise sistémica degeneraria na falência do nosso modelo de desenvolvimento e com essa falência viria a pobreza, a fome, a miséria e o conflito, o apocalipse. E foi assim, e apelando ao nosso sentido pragmático de grandes estadistas a que a mediocridade intelectual contemporânea parece aspirar, não só aceitámos que nada tivesse sido feito como nos conformámos ainda em suportar os bilionários fundos concedidos a essas sacro-entidades a título de resgate.
- na Ucrânia quando uma invasão e violação ostensiva de soberania (falo da Crimeia) fez soar os alarmes de uma possível guerra às portas da Europa muito se falou, muito se ameaçou e muito se sancionou para no final nos convencerem que uma tomada de posição forte e determinada em relação à Rússia seria altamente prejudicial para o interesse de todos. Foi-nos feito ver que embater de frente com a Rússia, para além das possíveis ramificações militares nada favoráveis, comprometeria a situação na Síria, onde se quer a Rússia como aliado e não inimigo… Confrontar este invasor desenfreado faria ainda cortar o fornecimento de gás a grande parte da Europa e nós não queremos chatear o senhor do gás. Os agentes de inteligência deste nosso modelo socio-económico (políticos, comentadores, analistas e académicos amplamente difundidos pelos meios de comunicação social que hoje nos entram em casa por todos os lados) lá nos desenharam o vislumbre do que seria tomar uma posição idealista perante o colosso russo, um desenho feito de frio e guerra num inverno apocalíptico que nos transportaria de volta aos “dark-ages”. E foi assim com naturalidade, sempre contando com o nosso alto e pragmático sentido de Estado, que acabámos todos a ver a Rússia a mandar e a desmandar a seu bel-prazer, pedinchando apenas que não nos corte o gás.
- na Grécia, quando depois de destratados, vilipendiados e humilhados, foi ameaçada por um governo radical, a saída da Grécia do EURO; os gregos estavam fartos desta Europa abusivamente mandona e tirana e ameaçaram bater com a porta na cara dessa mesma Europa até que lhes foi feito ver o que tal implicaria…Não só perderiam o acesso à tranche negociada mas, mais importante, ao apoio encapotado do BCE sem o qual deixariam de poder financiar os gastos públicos imprescindíveis à manutenção de uma dignidade mínima do povo grego. Foi assim com naturalidade e sempre contando com o pragmático sentido de Estado que até um Governo radical de esquerda sucumbiu a uma solução de comprometimento e lá ficaram os gregos amarrados a esta Europa que os despreza.

Também no caso do Brexit, quando comecei a assistir ao desfile de políticos, analistas financeiros, comentadores e arautos de todo o tipo do pragmatismo a alertar para os perigos catastróficos da saída da Reino Unido da União Europeia, tive a certeza de que uma vez mais iríamos assistir a uma manifestação de comprometimento para com uma solução que contentasse esta civilização comodista, amorfa e receosa dos perigos que advêm de desafiar a supremacia do primado financeiro. Tinha tanta certeza que tinha até já escolhida a citação para o “post” do BREMAIN, que viria em inglês e em formato de vídeo (vide No Surprises).


Enganei-me e nesse engano, discordando do nosso primeiro-ministro, considero o dia do BREXIT, não um dia triste, mas um dia feliz! Tão somente o facto de surpreender esta lógica capitalista de último reduto e desafiar a supremacia do primado financeiro significa mais opções, significa mais possibilidades, significa uma solução de ruptura num mundo mirrado por uma constate e amorfa escolha de soluções de comprometimento, significa a vitória de Democracia sobre a Tirania do Primado Financeiro e isso só pode ser motivo de felicidade. Mas os motivos do meu contentamento não se esgotam no simbolismo do resultado e da significância desse simbolismo. Já aqui havia defendido que a abordagem economicista e meramente financeira à realidade política deveria ser, não substituída, mas complementada por uma abordagem filosófica e humanista a essa mesma realidade e que o pragmatismo deveria dar lugar, de quando em vez, ao idealismo enquanto único catalisador capaz de “break-throughs” civilizacionais significativos e foi suportado nessa abordagem humanista que defendi a minha ideia de União Europeia (vide O Drama Europeu: A Superação – A Crise dos Refugiados e o Quinto Império), aproximando-a de um ideal 5º Império de Fernando Pessoa onde não há lugar para um Reino Unido que pretende sair da União Europeia não por motivos nobres mas motivado por razões xenófobas enfatizadas por um sentimento de arrogante despeito e desdém pelos seus parceiros de união, ou para um Reino Unido de “hooligans” cujo passatempo é ridicularizar crianças famintas (vide Hooligans Ingleses) e onde não há lugar para um país onde se esfaqueia até à morte quem pensa diferente. Por tudo isto é para mim um dia feliz o dia em que o BREXIT ganhou e foi ditada a saída do Reino Unido da União Europeia. 

O supracitado não significa que seja alheio ao facto de estarmos a falar da saída da 5ª maior economia mundial da União Europeia e de todas as previsíveis consequências dessa constatação (basta olhar para as bolsas mundiais) mas como diria José Saramago “…Acham eles que passando nós fome nas nossas terras nos devíamos sujeitar a tudo, mas aí é que se enganam, que a nossa fome é uma fome limpa, e os cardos que temos de ripar, ripam-nos as nossas mãos, que mesmo quando estão sujas, limpas são, não há mãos mais limpas do que as nossas (...) e um homem pode escolher entre a fome inteira e a vergonha de comer o que nos dão…”.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A democracia da ignorância

Pacheco Pereira (e não José Pacheco Pereira – vide Em NOME da Diferença) é actualmente o comentador político da minha predilecção. Poderia dizer que o é devido à isenção e independência que revela nesse mesmo comentário, à cultura e inteligência que demonstra na leitura da actualidade política ou a sagacidade que evidencia nas análises por si efectuadas…Poderia dizer tudo isso e seria verdade mas o motivo verdadeiro para tal preferência enraíza-se no facto de o que diz encontrar ressonância naquilo que também eu penso e sinto e em última análise, por muita abertura intelectual que possamos pensar que temos, acabamos sempre por seguir, acompanhar e gostar de quem exterioriza aquilo que também já nós somos e pensamos interiormente, sejam comentadores políticos escritores músicos cineastas.

Seve este prelúdio para introduzir o texto publicado por Pacheco Pereira no PÚBLICO a 04 de Junho (vide A máquina da ignorância ao serviço da política que não ousa dizer o nome); neste, o autor do mesmo insurge-se contra este facilitismo contemporâneo de qualquer um poder exercitar o seu direito de opinião de forma prepotente e até arrogante, sem qualquer pudor intelectual, e com pretensões de influenciar e contaminar as opiniões que em torno desses despejos gástricos possam gravitar que nem moscas esvoaçando sobre merda. Podendo eu mesmo incluir-me no grupo dos visados por Pacheco Pereira, afinal também eu escrevo neste vosso blogue a minha opinião leiga sem ser um académico de créditos firmados nem um conhecedor de facto com experiência nos corredores da política, a verdade é que não podia concordar mais com o exposto. Julgo sinceramente que um dos maiores problemas da nossa sociedade contemporânea emana desta assunção automática não discutida e não sancionada de que todas as opiniões têm valor e devem ser ouvidas e respeitadas. Pacheco Pereira parte desta premissa para depois ensaiar uma crítica à idiotice e estupidez do cartaz publicado pela JSD em que compara Mário Nogueira (o sindicalista da FENPROF) a Estaline, mas a premissa lançada nessa análise tem, na minha opinião, ramificações muito mais profundas e merecedoras de discussão que a mera publicação de cartazes idiotas e de mau gosto e é sobre essas ramificações que pretendo incidir o presente texto.

Referi no parágrafo anterior que “um dos maiores problemas da nossa sociedade contemporânea emana desta assunção automática não discutida e não sancionada de que todas as opiniões têm valor e devem ser ouvidas e respeitadas”…Numa primeira leitura, tal afirmação cai mal e pode até ser interpretada como uma arrogante e elitista manifestação de censura associada e ideologias ditatoriais. Desenganem-se, não o é. Jamais defenderia a restrição do direito à opinião de quem quer que seja! Mas peço agora que acompanhem o seguinte raciocínio… Pacheco Pereira critica a ignorância associada à facilidade contemporânea desta ser publicada e reproduzida em cartazes idióticos ou textos nas redes sociais de igual teor de idiotice mas essa manifestação de ignorância é a que menos me preocupa, pois só lê esses textos e só dá importância a esses cartazes quem quer; eu, por exemplo jamais visitaria qualquer site ou blog “sponsorizado” pela JSD, ou qualquer outra Juventude Partidária para o efeito, pelo que essa ignorância e estupidez, mesmo com todas as facilidades de propagação actualmente ao seu serviço, não me afectam minimamente. Já por outro lado, quando
penso que essa mesma ignorância e estupidez têm livre acesso ao voto democrático e quando constato que a idiotice delas resultante não se esgota em cartazes e publicações que possa evitar mas estende-se à escolha de decisores políticos cujas ideias, ideais, princípios e actuação impactam directamente na minha vida, estremeço! E é nesse estremecer que julgo ser justo questionar a valoração do direito à opinião de todos e qualquer um; quando o meio de comunicação escrito mais vendido e difundido em Portugal é o “Correio da Manhã” e o quando o meio audiovisual de informação favorito dos portugueses era o Jornal Nacional de Manuela Moura Guedes, conclui-se que a opinião cujo direito de exercício parece não se poder questionar é construída a partir de fazedores de opinião medíocres e de uma miserabilidade intelectual que quando posta ao serviço da democracia por via do voto popular desagua numa escolha deturpada pela ignorância dos condutores da nossa política nacional, culminando tal numa democracia da ignorância, que á a actual em que vivemos. Por isso sim, julgo ser não só justo mas mesmo imperativo questionar e discutir esta assunção automática de que todas as pessoas têm direito á opinião e que todas as opiniões têm o mesmo valor.

Discutindo então “ esta assunção automática de que todas as pessoas têm direito á opinião e que todas as opiniões têm o mesmo valor”, posso dizer que concordo com a primeira parte da frase, a de que todas as pessoas têm direito à opinião mas discordo da segunda, a de que todas as opiniões têm o mesmo valor; por exemplo, a minha opinião política é infinitamente de menor valor do que a de Pacheco Pereira, se atentarmos que a opinião do primeiro é formada e construída com o que lê e vê (leiga portanto) enquanto que a do segundo brota de um conhecimento académico testado e reconhecido e de um conhecimento de facto derivado da experiência directa sobre o tema me que se debruça. Assim, e tal como havia referido não defendo que deva haver qualquer restrição ao direito de opinião e ao seu exercício, como é por exemplo advogado nas teorias sociais “Elite Theory” e “Angels Theory”, mas reconheço que as opiniões não têm todas o mesmo valor e, atendendo à miserabilidade da opinião de grande parte, dever-se-á actuar com vista à elevação valorativa da opinião generalizada, o que apenas pode ser conseguido por via da Educação. Apenas através de um processo educativo que passe a incluir componentes cívicas e de consciencialização social e humanística poderemos passar desta Democracia de Ignorância para uma Democracia de Conhecimento.

Para ilustrar a identificação com Pacheco Pereira preludiada e que está na génese deste texto, cometerei a arrogância e o pedantismo de me auto citar:
“O pior das pessoas
É que todas têm opinião
E o pior da sociedade
É que todas as opiniões têm valor
E o valor das opiniões
É cego
Surdo  
E o valor das opiniões não se justifica
O predicado nasce aquando do sujeito
Garante-se a si mesmo sem qualquer mérito
E as pessoas tornam-se arrogantes
Porque as suas opiniões têm valor
Apesar de não o terem
As pessoas ganham coragem
E verbalizam as suas opiniões
As pessoas arrogantes convencem-se das suas opiniões
E quando as pessoas se convencem
Apesar da miserabilidade que as acompanha
Das suas opiniões
O mundo torna-se um sítio pior.”

(Sandro Morgado, em “O Prelúdio do Eu Social”, 26-04-2014)

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A moral do absurdo

Todos os contos têm uma moral e como quem lê um conto sempre lhe acrescenta um ponto, dedicarei este texto a determinar e a precisar a moral do pseudo conto por mim publicado de título “A Escola e os Cães”. Chamemos-lhe uma declaração de intenção. Tentarei desta vez ser o mais frontal e directo possível e evitar devaneios líricos e recursos estilísticos que pela minha manifesta inabilidade literária possam deturpar a significância do conteúdo do que escrevo.

1º - Abomino com todas as minhas forças e com todo o fel que corre nas minhas vísceras o elitismo, snobismo e exclusivismo associados ao ensino privado. Considero o acesso à educação um dos mais sagrados e fundamentais direitos humanos e defenderei sempre um acesso à educação gratuito, inclusivo e universal, o qual apenas pode ser garantido pelo sector publico.
2º - No que aos contratos de associação com colégios privados concerne, sou de opinião até mais extremada e radical que aquela defendida pela moderação do governo actual e para mim, em zonas geográficas em que não existam escolas publicas mas educandos, ao invés de se subsidiarem colégios privados sou da opinião que se deveriam construir escolas publicas de raiz pelo que, na minha opinião, a subsidiarização de colégios privados deveria cessar por completo e canalizados os recursos estatais na garantia de uma escola publica abrangente de toda a população dela necessitada, cada vez mais gratuita e de maior qualidade.

3º - A adjectivação usada relativamente à escola pública é feita na perspectiva do protagonista do conto (o Martim Maria de Vasconcellos), de forma a enfatizar e exacerbar a perspectiva preconceituosa, deturpada, altiva, elitista e snob que os filhos mimados dos colégios privados detêm sobre a escola pública, a qual é uma perspectiva diametralmente antagónica à minha, o autor do conto.
4º - Ao invés do 3º ponto, a adjectivação usada referente ao ensino privado (“escola de fidalgos”, “clube privado”, “Nossa Senhora dos Favorecidos” …) é feita numa perspectiva de narração, pertencendo por isso ao seu autor e neste caso reflectindo, de facto, o desdém e aversão que eu nutro pela cultura do ensino privado.
5º - A inscrição do cão de Martim Maria de Vasconcellos na escola pública é o culminar do absurdo de dois temas que dominaram o debate político nacional nos recentes tempos, nomeadamente a questão da subsidiarização de colégios privados e as propostas defensoras do estatuto de animal apresentadas pelo PAN.
6º - As vaias a um Governo que corta nos subsídios a colégios privados quando na escola pública falta leite para o pequeno almoço e a frivolidade da discussão do estatuto e direitos dos animais quando crianças passam fome são sintomáticas de um processo de desumanização que Franz Kafka descreveu e caracterizou como ninguém, e daí a citação da frase de abertura de "Metamorfose".   


“A vida está cheia de uma infinidade de absurdos que nem sequer precisam de parecer verosímeis porque são verdadeiros.” (Luigi Pirandello)     

sábado, 21 de maio de 2016

A Escola e os Cães – um possível conto do absurdo

Martim Maria de Vasconcellos era um menino de doze anos, que como todos os meninos da sua idade gostava de brincar mas que, como apenas alguns petizes, gostava também de ir à escola. O estranho motivo do gosto de Martim pela escola emanava no facto desta se constituir num colégio privado de meninos de bem, onde a sua turma era composta somente pelos seus 10 amigos de infância, todos eles primogénitos e herdeiros de apelidos amicíssimos da família de Vasconcellos; contribuía também para esta apetência de Martim Maria pela escola o facto de nesta os professores tratarem todos os educandos como pequenos príncipes e todas as necessidades pedagógicas e lúdicas dos pequenos de três nomes serem imediata e plenamente respondidas e satisfeitas por este diligente e capaz colégio, que era 3º nos rankings das melhores escolas do país. Contribuía também para a preferência de Martim em ir à escola o facto de nesta apenas coexistir com as moçoilas da sua idade que eram as mais bonitas da região, as mais bem ataviadas com as roupas mais caras e sempre em concordância com o dress-code catolicista vigente na sua escola, algo louvável aos olhos evangelizados de Martim; Martim Maria não teria assim de ofender os seus pequenos olhos com as meninas desgrenhadas e mal-arranjadas dos bairros da periferia, que se amontoavam em turmas mistas de trinta na escola publica, onde o rácio de 1 funcionário por 1000 alunos não conseguia satisfazer as necessidades da forma diligente que as escolas privadas com um rácio de 1 funcionário para 10 alunos conseguiam atingir, e que as fazia afundar nos rankings das escolas e serem mal vistas e desapreciadas por uma larga maioria da sociedade.

Neste dia, um dia futuro a que o conto se reporta, Martim Maria de Vasconcellos encontra-se inconsolável, de profunda tristeza como nunca antes tinha sentido. Forças externas à sua vontade fizeram com que muitos dos seus amigos de infância passassem a deixar de frequentar o clube de pequenos fidalgos a que chamam de colégio e tivessem de ser transferidos para a escola pública, numa óbvia condenação ao analfabetismo e ao insucesso escolar. De acordo com as notícias publicadas pelo jornal do pai do amigo de Martim, Vicente Francisco de Mello, “o governo nacional, numa ultrajante medida motivada por pura quezília ideológica, cortou nos subsídios aos colégios privados obrigando-os a cortarem no número de turmas a leccionar, que, como todos sabem, não pode exceder os 10 alunos sob pena de comprometer a qualidade do ensino praticada e os sacro rankings da educação”. A debandada de muitos dos seus amigos de infância significa, neste dia, para Martim, uma perda irreparável e um dano insanável ao seu gosto e apetência pela escola, ela que ao deixar de ter muitos dos seus amigos favoritos, distanciara-se daquela imagem idílica de clube privado que o papá e a mamã de Martim tanto se esforçavam por manter.

Neste dia, neste exacto dia, Martim Maria de Vasconcellos, lacrimoso de lágrimas impotentes perante este autoritário Estado de coisas, caminha com um dos seus mais queridos amigos rumo à nova escola deste; Martim, como bom amigo, acompanha o amigo neste seu primeiro dia de escola pública, seguindo depois para a sua querida escola de sempre, ele que continuava na 3ª melhor escola do país. Chegados às imediações da nova escola do amigo, o estado lacrimoso do pequeno Martim Maria de Vasconcellos irrompeu num choro convulso de infinita piedade e compaixão pelo seu querido amigo…Martim reparara naqueles que seriam os próximos companheiros de aprendizagem e de brincadeiras do seu condenado amigo; neles se contavam os filhos de vários empregados fabris da empresa industrial do pai de Martim (empresa que se dedicava à exportação de papel, com mercado preferencial no Panamá), o filho mais novo da Maria, a empregada doméstica da casa de Martim, e até a filha da senhora que o pai de Martim apelidava, sempre que a avistava, de má-vida. Martim chorava e foi choroso que se dirigiu ao contínuo da pulguenta escola e perguntou onde se poderia registar o seu amigo que vinha para esta escola no âmbito do processo de encerramento de turmas do Colégio da Nossa Senhora dos Favorecidos. Chegados à Secretaria da Escola E.B. 2/3 dos Ranhosos e Piolhosos, e questionado pela gorda senhora que lá habitava uma poltrona gasta e velha acerca do que pretendia, Martim Maria de Vasconcellos respondeu:
- Venho registar o meu cão na vossa escola!   



“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de insecto.” (Franz Kafka, em “Metamorfose”)

sábado, 7 de maio de 2016

A maldição da Língua Portuguesa

Nota ao Leitor – o presente texto não será escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico.


Não sou pessoa devota de particular religiosidade mas nutro em mim um sentido de divindade que à noção de “karma” se assemelhará; uma crença, não fundamentada racionalmente nem factualmente, de que a actos, atitudes e condutas adoptadas no presente corresponderão sempre, de forma mais ou menos tangível, as conformes consequências no futuro.

A 13 de maio de 2009 iniciou-se o período de transição do designado Acordo Ortográfico, que terminado em 2015 significou uma nova forma de escrever e falar o Português. Este acordo de mudança designa um claro abastardamento da língua portuguesa na sua submissão ignominiosa àqueles que não sendo os seus pais, são os que actualmente têm o capital e os recursos que a sustentam. Traduzindo para Português de Camões…Numa idiótica tentativa de aproximação ao
capital dos países mais ricos que português falam, o Estado português esboçou esta atrocidade de Acordo Ortográfico que almeja uma uniformização da língua portuguesa determinada e ditada pelas preguiçosas versões faladas e escritas no Brasil, Angola e Moçambique. Para que o capital destes países, tão ansiados em Portugal, se pudesse exprimir na sua plenitude capitalística, deixou-se de usar consoantes para abrir vogais e neste fecho da língua portuguesa à diversidade e peculiaridades que a enriquecem, agradou-se a quem essa diversidade não conseguia perceber, numa submissão de um dos maiores patrimónios nacionais (que é a sua Língua) ao primado financeiro, no que poderia ser descrito como mais uma manifestação cabal deste Capitalismo de Último Reduto que até à Língua Oficial de um país submete aos caprichos do seu capital de sequestro.

Evocando o preâmbulo deste texto, não posso deixar de sentir um certo regozijo ao analisar o estado actual dos principais protagonistas deste abastardamento e deste insulto à Língua Portuguesa, 7 anos depois de perpetrados. Vejamos…
- Brasil: em profunda crise económica decorrente da baixa dos preços de petróleo, também a sua língua nativa que é a corrupção sofreu com a mudança de humor do capital que a sustenta, e perante a escassez de recursos que passou a grassar nas suas carnavalescas elites, desnudaram-se (alguns/poucos) corruptos e num decrépito e folclórico episódio novelesco colocou-se o país à beira de uma grave crise social que, por tão obscena ser, nem com o recurso ao Português de Bocage se conseguiu definir, tendo ficado associado a um “inglesismo”, que tão típicos são no Brasil – IMPEACHMENT!
- Angola: também a braços com uma crise económica gerada pela baixa dos preços de petróleo, o portento económico africano temeu pela sua cleptocracia gravitante dos Santos, e numa humilhante demonstração de fraqueza pediu ajuda ao FMI, vendo agora as portas portuguesas para a Europa cosmopolita com que fantasiam cada vez mais estreitas.
- Moçambique: não só as contas foram escondidas em Moçambique e agora que foram descobertas as 1.600 milhões tensões escondidas entre Renamo e Frelimo, o país vive não só o perigo do colapso financeiro derivado do corte dos apoios da entidades internacionais de que depende umbilicalmente, como o Banco Mundial e mil e uma outras entidades internacionais de todo o tipo de fomento, como enfrenta também a ameaça real de uma guerra civil, sanguinária ao bom estilo africano.
- Portugal: decrépito e dependente das suas antigas colónias, o velho senhor feudal e esclavagista encarquilha-se agora, curvado em si mesmo, num canto da Europa tremendo e rezando para que os seus antigos súbditos não sucumbam às suas patologias crónicas e bombeiem sangue fresco (entenda-se capital financeiro) para este coração moribundo da Língua Portuguesa.

 “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

domingo, 24 de abril de 2016

25 de Abril

Porque o 25 de Abril tem mais de poesia do que prosa, deixo o meu "post" comemorativo em formato diferente:

Os cravos que vestem o vermelho

Do sangue por derramar
Cantam canções de liberdade
E dançam o fim de censurar
Poemas escritos por canhões não disparados
Inspiradores de democrata beldade
Musa virgem de méritos não conspurcados
Ao ditador fez de velho.

De piedade esquecida se perdoam os velhos
Que apesar de tortura e matança
Se esfumam no tempo de novos vilões
Que na liberdade castram a esperança
Do sonho por realizar
A ditadura agora é a dos tostões e dos milhões
E o sofrimento por não ter o que trabalhar
Comemoremos ao menos os cravos ainda vermelhos.

Lembrança e memória do sangue vermelho
Daqueles que em nome da pátria morreram
Torturados, deportados, censurados…para sempre silenciados!
E mesmo com a desilusão e frustração que da revolução nasceram
Não tomemos vilões por heróis
E não esqueçamos nos tempos passados
Os que por pensarem e falarem não viam sóis
Tributemos pois os que por liberdade não chegaram a velho! 

domingo, 17 de abril de 2016

A Grécia e o “Bullying”

Há tempos fiz notar que uma das principais, senão a principal diferença entre este e o anterior governo constituía-se no alheamento e no alinhamento, respectivamente, com a lógica sequestradora do Capitalismo de Último Reduto (vide Capitalismo de Último Reduto em Portugal – a diferença irrevogável entre PS e (este) PSD). Na altura, referi-me essencialmente, para ilustrar essa diferenciação, à concepção de diferentes modelos de crescimento económico por parte do antigo governo e por parte do actual, porquanto o primeiro concebia um modelo de crescimento concordante com esse mesmo capitalismo sequestrador e o segundo concebe um modelo de crescimento de ruptura com o último estágio evolutivo do Capitalismo.

Mas esta diferença irrevogável entre PS e (este) PSD não se esgota na concepção dos respectivos modelos de crescimento económico, manifestando-se também com particular evidência na tomada de posições no que à política externa diz respeito. No último texto postado (vide Luaty Beirão e o Capitalismo de Último Reduto), evidenciei mais uma manifestação desta diferenciação, gritada na propositura por parte de PS à condenação da condenação pelo regime Angolano de Luaty Beirão e à estridente recusa por parte de PSD. No presente texto proponho-me evidenciar mais uma manifestação da dicotomia alinhamento/alheamento ao Capitalismo de Último de Reduto latente entre o anterior e actual governo, servindo desta vez como exemplo cristalino dessa diferenciação o posicionamento perante a Grécia e a sua crise.

Aquando da discussão da concessão do último empréstimo à Grécia, a União Europeia comandada por Alemanha e suportada pela tecnocracia de Bruxelas mostrou o seu verdadeiro rosto, que não é o da cooperação e de solidariedade mas a de força arrogante e sobranceira do poder do mais forte perante o mais fraco, que a “Bullying” se assemelha. Aprofundemos a analogia…

Imaginemos a Alemanha como o rufia principal da escola que é a União Europeia e Bruxelas e os seus tecnocratas os amigos rufias seguidores daquele; Grécia, Portugal e Espanha constituem-se naqueles a quem frequentemente roubam a lancheira.
Depois de tanto ter infernizado a vida aos pequenos marginalizados, com medidas de austeridade que roubaram o recheio das suas lancheiras, o “bully” Alemanha preparava-se para mais uma emboscada à petiz Grécia, mas desta vez existiam dúvidas legítimas se neste assalto de “bullying”, seria acompanhada pelos seus comparsas habituais de Bruxelas, isto porque estes últimos começavam a duvidar dos proveitos que tais investidas desta natureza geravam, atentando no facto de depois de tantos almoços e lanches roubados aos pequenos e fracos, Grécia, Portugal e Espanha terem começado a deixar de levar almoço para a escola e terem passado a ir comer a casa ou até passarem fome, tal era a vergonha e humilhação a que eram acometidos por estes actos de “Bullying” a que amiúde eram sujeitos. Pressentindo tal relutância por parte de Bruxelas, a Grécia encheu-se de coragem e preparou-se para fazer frente à temível Alemanha; perspectivando que esta se apresentaria sozinha para a confrontação, a Grécia contava que Portugal e Espanha se aliassem a ela para fazer frente à Alemanha, pois constituir-se-ia esta numa oportunidade única de bater o pé a este “bully” desenfreado e assim fazer com que ele nunca mais voltasse a roubar as suas lancheiras nem a dar “calduços” e bofetões humilhantes que já se tornavam prática comum na escola. Chegado o dia, e quando a Grécia passava no corredor da cafetaria com a sua lancheira eis que lhe salta à frente a Alemanha e exige-lhe ameaçadoramente o seu almoço e lanche; a Grécia mantém-se firme e diz que desta vez não lhos dará, ao mesmo tempo que olha para trás de si e constata tristemente que lá não estão nem Portugal nem Espanha nem Itália nem Irlanda…Olhando mais atentamente a Grécia enxerga, escondidos por detrás da máquina de refrigerantes, os seus ex-companheiros de humilhação a presenciar a cena. Mas Portugal não se limitou à atitude covarde de se esconder a assistir a mais uma exacerbação sobranceira de força da Alemanha sobre a “fracalhota” Grécia, não… Portugal, numa derradeira manifestação da mais desprezível covardia desatou a correr a ir chamar os “bullies” de Bruxelas gritando que a Grécia hoje trazia a lancheira cheia de muitos e bons petiscos e que havia muito com que os de Bruxelas podiam ainda encher o bandulho (como as privatizações de muitos sectores de actividade económica grega ainda no domínio publico, como o património de propriedade pública, como reformas de valor elevado concedidas em tenras idades, etc. etc.), na esperança patética de com esta atitude bajuladora e submissa cair nas boas graças dos seus carrascos do costume e assim evitar que no futuro se metessem com ele… Como esperado, e depois do chamamento de Portugal e de muitos “calduços”, pontapés e ameaças a Grécia lá capitulou, entregando uma vez mais a sua lancheira aos “bullies” que até de expulsão da escola ameaçaram a pequena Grécia.

A metáfora supracitada evidencia o que foi a posição assumida pelo então governo de Pedro Passos Coelho perante a crise grega, posição de resto suportada e apoiada pela maioria da sociedade portuguesa, que entendeu tal distanciamento da Grécia e aproximação à Alemanha e Bruxelas como uma tomada de posição responsável e consequente, numa demonstração cabal e vergonhosa de submissão de tudo, de todo o tipo de valores e princípios, ao primado financeiro, naquilo que se pode definir como mais uma manifestação do Capitalismo de Último Reduto:
- manifestação grega: perante a possibilidade de confrontar a União Europeia e as forças que nela mandam com o fracasso comprovado com que a estratégia “austeritária” está a destruir o tecido da construção europeia, Portugal de Pedro Passos Coelho optou por alinhar com os prossecutores dessa mesma estratégia. Porque o fez? Para além de uma clara identificação ideológica que o antigo governo nutria por este tipo de medidas, que para a sustentação argumentativa aqui desejada não vem ao caso, se Portugal assumisse uma posição correcta em termos dos princípio e valores que devem orientar a condução da sua política externa no âmbito da União Europeia e denunciasse e se opusesse a esta sobranceira chantagem típica de “bullying” levada a cabo contra a Grécia, tal seria percepcionado pelo Alto Capital e pelos seus mercados como uma apologia de Portugal a um certo tipo de relaxamento no controlo das contas publicas, o que por sua vez seria percebido pelas agência de “rating” como um aumento do risco de não cumprir com o seu serviço de dívida, levando a notações de risco mais desfavoráveis que implicariam o acesso a mercados de dívida ainda mais dificultado podendo tal ainda espoletar a necessidade de um novo auxílio financeiro e logo novas medidas de austeridade castradoras das potencialidades de crescimento e desenvolvimento socioeconómico português. Assim, concluir-se-á que o abandono a que Portugal vetou a Grécia e o seu alinhamento com os mais fortes da Europa, seus habituais “bullies” de serviço, constitui-se numa medida social de combate à austeridade na defesa das possibilidades de crescimento económico e desenvolvimento da população portuguesa, culminando tal dedução lógica naquilo que é o sequestro da política externa por parte do Capital, numa nova demonstração cabal de submissão de tudo ao primado financeiro…Assim é no Capitalismo de Último Reduto…

"Se quem pede o empréstimo e o vai gerir diz que aquilo não vai resultar, o melhor é não perdermos dinheiro. Eu direi, portanto, que é necessária uma atitude diferente da parte do Governo grego para que as coisas possam resultar (…) Devo dizer até que, curiosamente, a solução que acabou por desbloquear o último problema que estava em aberto, que era justamente a solução quanto à utilização do fundo [de privatizações], partiu de uma ideia que eu próprio sugeri. Quer dizer que até tivemos, por acaso, uma intervenção que ajudou a desbloquear o problema (…) 25 mil milhões pudessem ser utilizados para, de certa maneira, poder privatizar os bancos que estão agora a ser recapitalizados". (Pedro Passos Coelho, no rescaldo das “negociações” entre União Europeia e Grécia).

A manifestação aqui descrita designa na perfeição a capacidade sequestradora deste Capitalismo de Último Reduto; uma capacidade suportada por um pragmatismo lógico e coerente que torna só mais difícil a sua refutação. Medidas que são, por si, socialmente injustas, anti-democráticas e eticamente reprováveis mas que ao abrigo deste modelo económico-social de Capitalismo de Último Reduto se revestem de sentido lógico, coerência e pertinência apenas podem atestar a perversão e perniciosidade deste mesmo modelo.

Felizmente, o actual governo parece não querer afinar com este diapasão do Capitalismo de Último Reduto, o que ficou bem latente aquando da recente visita de António Costa á Grécia e subsequente assinatura conjunta de Declaração contra Austeridade na Europa.
"Nós temos todos beneficiado muito de uma atuação do Banco Central Europeu, que não existia em 2010, e que graças a isso houve uma redução geral das taxas de juro, no conjunto da zona euro (...) mas não nos devemos deixar iludir de que essa redução significou que o problema estrutural da assimetria das economias ficou ultrapassado e que não necessitamos de ter um instrumento e um novo impulso para a convergência económica. Seria um erro pensarmos isso" (António Costa, no rescaldo da visita à Grécia)