No outro dia visitei Auschwitz.
Era uma quinta feira de manhã nebulosa quando a carrinha
Mercedes preta de vidros esfumados parou junto ao hotel onde me hospedara para
recolher os hóspedes deste interessados em nesse dia visitarem o antigo campo
de concentração nazi. Tendo entrado quatro pessoas no dito veículo de marca
germânica, dois casais de idade grisalha que se encontravam hospedados no Hotel”
Kossak”, dirigi-me ao condutor do mesmo questionando-o se aquele seria o veículo
que me conduziria a Auschwitz, ao que me respondeu que não, que dali seriam
apenas quatro pessoas a transportar. Após consultar com a recepcionista do
hotel e desta ter confrontado o motorista da carrinha, parecia que afinal eram
cinco os hóspedes do Hotel “Kossak” a visitarem Auschwitz nesse dia. Foi então
que o motorista do Mercedes, loiro de olhos claros com uma barbita imberbe de 4
dias, me convidou a sentar à frente, ao seu lado no lugar de passageiro,
informando que faltaria somente passar por mais um hotel antes de rumarmos ao
destino pago da nossa romaria. O carro estava já praticamente cheio de
visitantes turistas de outros hotéis de Cracóvia. Tendo recolhido os últimos turistas
a transportar o nosso guia automobilizado, inseriu no sistema audiovisual do
automóvel um DVD com um documentário sobre Auschwitz. E foi assim, entre
relatos de sobreviventes de Auschwitz entrecortados com gargalhadas do condutor
que a meu lado amiúde ria e barafustava para o seu telemóvel, que cheguei a
Auschwitz.
Chegado a Auschwitz, a quantidade de autocarros turísticos estacionados
e a quantidade de máquinas fotográficas pendendo de pescoços escaldados de
vermelhões típicos de turistas incautos, fez-me questionar se não estaria numa
qualquer Disneylândia, uma Disneylândia negra e macabra, que atrai tanto como a
colorida e alegre em Paris. Contornando a enorme fila para a entrada de
Auschwitz I, afinal nós que pagámos uma visita com guia parecíamos ter mais
direito a visitar o macabro do que os outros que desembolsaram menos Zlotys,
fomos apresentados pelo nosso condutor àquela que seria a nossa guia para o dia,
que nos ofereceu uns “phones” através dos quais, após colocados nos nossos
ouvidos ávidos de turistas, poderíamos ouvir todas as indicações, explicações,
contextualizações e peculiaridades com que a nossa guia nos guiaria por
Auschwitz. Foi-nos explicado que este era Auschwitz I, o primeiro existente do
enorme complexo de Auschwitz e o primeiro a ser usado e aproveitado pelos nazis
para aprisionamento dos trabalhadores forçados que ali morreram ou trabalharam
até morrer; a visita a Auschwitz II – Birkenau (o Auschwitz que estamos
habituados a ver nas televisões e nos filmes da 2ª Guerra Mundial, e portanto a
grande atracção turística de Auschwitz) ficaria para a parte da tarde. Por ora
visitaríamos este complexo que fora o primeiros a ser usado para extermínio em
massa de judeus, entre outros.
À entrada de Auschwitz I, somos agraciados com a placa de
boas vindas onde se lê “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”). Ao longo dos
vários edifícios protegidos por arame farpado electrificado vamos sendo
confrontados com os vários episódios que compõem esta verdadeira narrativa do
mal…Por entre o trabalho escravo, o tratamento desumano, as torturas e a
matança em massa, jamais me esquecerei da fotografia de um menino de 2 anos
alvo das experimentações do Dr. Josefe Mengele, também conhecido por Anjo da
Morte ou Dr. Morte. Nessa foto, a criança, claramente desnutrida e maltratada,
não grita, não berra nem se desfaz num esgar de dor…Não, essa criança limita-se
a, com uma única lágrima vertida no seu rosto, olhar-nos numa contemplação onde
revela o fim de tudo, esclarecendo-nos com o seu olhar a possibilidade infinita
da maldade e crueldade humanas. Nessa mesma sala onde o olhar dessa criança “tratada”
pelo Dr. Morte matou algo em mim que jamais conseguirei ressuscitar,
encontrava-se em pessoa uma sobrevivente de Auschwitz; sentando-se ao lado de
uma foto sua de quando tinha dez anos, explicou-nos aquela foto, dizendo que
foi tirada pelo exército vermelho no dia seguinte à libertação e de como estes
a tinham feito vestir o fato de prisioneira para as referidas fotos, mesmo referindo
que as crianças não andavam vestidas como prisoneiras. Na foto, pousava com a
sua irmã gémea (os alvos das experimentações do Anjo da Morte eram preferencialmente
gémeos, dos quais o Dr. Mengele tentava apreender o segredo genético para a
reprodução em massa, o qual replicados ao povo germânico, potenciaria a
desejada repopulação avassaladora da raça ariana). Depois de contar alguns
aspectos daqueles nove peculiares meses da sua infância, esta senhora octogenária
surpreendeu ao revelar que tinha perdoado os nazis, mas que o havia feito por
ela, não por eles…De seguida, e para gáudio de muitos dos turistas do macabro
que comigo partilharam esta visita, encaminhámo-nos para a primeira câmara de
gás a ser usada na matança em massa perpetrada pelos alemães da década de 40.
Foi, a seguir à foto atrás mencionada, o segundo momento a me causar maior
impressão nesta visita a Auschwitz; pisar aquele chão, aquele mesmo chão onde há
cerca de 75 anos pessoas inocentes, alheias ao facto de ali estarem nuas com
tanta outra gente, com os seus filhos bebés ao colo e olhar para cima e ver as
aberturas por onde era libertado o infame gás, é uma sensação indescritível,
uma azia e apatia sentimental que procura desesperadamente no relato que nos
entra pelos ouvidos qualquer indício qualquer coisa que atenue aquele horror
com que se é confrontado mas que nada encontra a não ser mais detalhes da
ilustração da fealdade humana. À saída do referido campo de gás, é-nos
impossível não regozijar quando a guia indica que ali, mesmo à frente do campo
que tanta gente matou, foi enforcado após condenado o primeiro governador de Auschwitz
Rudolf Höß.
Terminada a primeira parta da visita, era agora hora de
rumar à nossa carrinha que nos transportaria para a segunda parta da visita, a
grande atracção “Auschwitz II – Birkenau”. Antes, tive tempo ainda para engolir
o meu almoço, um cachorro quente adquirido na barraca de Kebab á frente do
hotel donde partira, prevenido que estava para os preços turísticos de
Auschwitz.
Chegados a Birkenau, é impossível ficar indiferente à sua
entrada icónica, com o portão guardado por vários pontos de vigília e ao lado a
entrada para os comboios que de toda a Europa chegavam transportando condenados
ao Holocausto. Na imensidão verdejante dos campos que compõem Auschwitz II (é
vinte vezes maior que Auschwitz I), foi-nos explicada a velha eficiência alemã:
os comboios chegavam e paravam a meio do ferrovia inserida no complexo, sendo
aí efectuada a imediata triagem dos que, estando em condições para trabalhar
seguiam para os seus “aposentos” e dos que, não estando em condições para
trabalhar, maioritariamente crianças, mulheres e idosos, percorriam o resto da
ferrovia até ao fim daquelas planícies verdejantes para aí conhecerem o fim da
sua viagem que se constituía nas câmaras de gás e respectivos crematórios onde
as cinzas da memória queimam a história humana. Depois de visitar as ruínas das
câmaras de gás e crematórios fomos convidados a conhecer um exemplo dos “aposentos”
onde os aptos a trabalhar ansiavam para que os seus no fim da planície se encontrassem
melhor do que estes. Estes “aposentos”, muitos deles originalmente construídos
como estábulos para albergar até 40 cavalos das SS, serviam de alojamento para
mais de 200 prisoneiros, que em estrados de 4m por 4m e com diferença de 1m
para os estrados de cima e em baixo, repousavam, em grupos de 5, a força de
trabalho de tantas empresas alemãs, muitas delas ainda hoje existentes, na
altura florescentes e crescentes em pujança com tão afincada e dedicada
mão-de-obra. Foi depois de visitar os aposentos dos habitantes de Birkenau que
foi dada como terminada a visita; era hora de voltar ao nosso carro onde o
nosso motorista nos esperava para nos levar aos nossos aposentos, que o fez num
caminho de cerca de uma hora enquanto bebia uma cerveja em copo de plástico
adquirida em Birkenau.
Chegado ao meu quarto de hotel, e enquanto digeria aquela
visita, o cachorro no meu estômago latia por soltura. Sentado na latrina do
hotel “Kossak”, tentava confortar-me dizendo de mim para mim que tal atrocidade
ocorrera há mais de 70 anos e, apesar de historicamente tal não ser muito,
vivemos hoje num mundo completamente diferente em que o acesso massificado à
cultura de informação impedirá tais manifestações de maldade e crueldade voltar
a ocorrer. Mais reconfortado, puxei do meu Smartphone, onde na minha app do “Publico”
li que o ministro das finanças alemão Wolfgang Schauble pedia a aplicação de
sanções a Portugal e adivinhava novos pedidos de resgate para Portugal, numa tentativa
de condicionar a condução da política nacional interna, no que apenas pode ser
descrito como uma diplomacia abusiva e invasiva da soberania nacional; numa
notícia logo abaixo fui confrontado com as declarações do cada vez mais popular
candidato a líder do mundo livre, Donald Trump, nas quais o homem laranja da
peruca loira prometia construir um muro ao longo de toda a fronteira com o México
e garantia que faria os mexicanos pagar por esse mesmo muro. Percorrendo a
página do Público, li como um homem, supostamente ligado ao terrorismo DAESH,
se lançou com um camião numa imensa multidão em Nice, matando e trucidando
indiscriminadamente. Li ainda como um outro homem, rapaz de 19 anos, entrou num
comboio na Alemanha com um machado e começou a atacar para matar os seus
passageiros. Ainda na Alemanha, em Munique, constava numa notícia paralela à
anterior, um ataque terrorista a um centro comercial tirara a vida a nove
pessoas. De volta a França, li como homens invadiram uma igreja na Normandia,
fizeram cinco reféns incluindo um padre de 84 anos, que obrigaram a ajoelhar-se
para depois o degolarem.
Cansado das notícias do macabro, decidi consultar um artigo
de opinião; nesse artigo, o seu autor argumentava, sustentando esse argumentário
empiricamente, que uma das principais consequências do terrorismo islâmico na
Europa passará por um crescimento das forças políticas de extrema-direita,
simpatizantes dos ideias xenófobos e racistas em que se alicerçou a construção de
Auschwitz.
Depois de percorrer os meus olhos pela actualidade, eles que
cansados estavam da visita desse dia ao passado macabro, não só os despojos vadios
da minha tripa se perderam num esgoto de Cracóvia, com eles foi também
esvaziado de mim o falso senso de conforto com que tentava superar Auschwitz.