Na minha tentativa de vos desenhar o rosto, o corpo e os
membros do Capitalismo de Último Reduto que é este Frankenstein da sociedade
contemporânea e “desenvolvida”, esbocei os seus traços marcantes, nomeadamente
a sua génese e maculada concepção, a sua manifestação e exacerbação e a sua alma-mater aglutinadora de uma lógica irresistível. Em todos esses traços, como um cunho de artista de génio, existe a
forma única de “pincelar”, de fazer tocar o pincel na tela que diferencia
aquele artista de todos outros e o torna único. Assim é com o Capitalismo de
Último Reduto. O Capitalismo de Último Reduto é o artista maior da era
contemporânea; pega no seu pincel que é a Finança e esboça na tela que é o
mundo actual a sua obra-prima e o traço único que o diferencia, a forma de
fazer tocar o pincel na tela que o torna único e o diferencia dos demais é o
pragmatismo.
Se a submissão ao primado financeiro se constitui a
filosofia, a matriz e a alma do Capitalismo de Último Reduto, o pragmatismo
assume-se como a lógica dessa filosofia, a sequência da matriz e a
religiosidade dessa alma pragmática do Capitalismo de Último Reduto.
A elite política da actualidade não passa de praticantes
mais ou menos forçados deste pragmatismo que condena a sociedade contemporânea à
reclusão neste Castelo Kafkiano em que vivemos. Se no Castelo reina a
abundância e prosperidade vivemos felizes e contentes, se nele passa a grassar
a fome e a miséria, protestamos barafustamos e maldizemos mas nunca ousamos
abandonar o Castelo e nunca ousamos abandonar o Castelo porque pragmaticamente
sabemos, porque nos foi dito, que fora dele existe um mundo selvagem de criaturas
ferozes que nos despedaçaria caso ousássemos pôr um pé fora do Castelo. Assim é
o Mundo Actual, onde o pragmatismo parece ter subjugado o idealismo a uma
quarentena indefinida. Os nossos políticos conduzem a política do “tem de ser”
e o aparatos mediático que à volta destes gravita (órgãos de comunicação social,
comentadores e analistas políticos e fazedores de opinião de todo o género,
etc.) esforça-se para nos dizer que se assim não for vem a calamidade, o
apocalipse, o Mundo Selvagem fora do Castelo.
São várias as manifestações na realidade política que
atestam a supressão do idealismo pelo pragmatismo e o reino incontestado deste
último como religião dominante e unitária na condução política deste
Capitalismo de Último Reduto, que é o que governa as nossas vidas actuais.
Destas, referirei apenas duas para que, a título de exemplo, melhor se perceba
a ideia que estou a tentar veicular.
Barack Obama e a
presidência dos EUA - Barack Obama conseguiu a eleição para presidente dos
Estados Unidos da América no seguimento de uma campanha movida, alimentada e
exponenciada por um Idealismo que culminou no seu slogan vitorioso “Yes We Can”
(estaria Barack Obama a dizer que sim, que conseguiríamos abandonar o Castelo
pragmático e burocrático em que livremente estamos presos?). O idealismo revelado
associado à inegável capacidade retórica e carisma de Barack Obama valeram-lhe inclusive,
antes de qualquer acção presidencial, o Prémio Nobel da Paz, tal não fora a
capacidade mobilizadora do Idealismo pregado. No entanto, abandonado o palanque
de discursos e sentado na Casa Branca, cedo o Obama idealista cedeu lugar ao
Obama pragmático e apesar de alguns aspectos positivos a nível doméstico, como
a implementação de um Serviço Nacional de Saúde, a verdade é que os dois
mandatos de Obama emanam do manual típico da política do “tem de ser”, senão
vejamos:
- Wall Street e a Crise Financeira de 2008: O Barack
Obama campanhista e idealista era duro com as libertinagens e devaneios destes banqueiros
de Investimento desregulados e gananciosos, prometendo punições duras para com
estes e políticas que garantissem que tais acções alimentadoras desta ganância
destruidora nunca mais voltassem a ser possíveis no futuro, fazendo alinhar as
sua posição com a de um dos mais severos e duros críticos de Wall-Street, Paul
Volcker, que muitos acreditavam ser o próximo Secretário do Tesouro caso Obama
ganhasse as eleições presidenciais. Já o Barack Obama presidente e pragmático,
promoveu uma reunião amigável entre os maiores banqueiros de “Wall-Steet”, onde
ficou decidido amigavelmente que nenhuma punição deveria ser aplicada aos senhores
de Wall-Street e que, ao invés, seriam ainda libertados mais fundos estatais se
destes os feudais de Wall-Street necessitassem; a reunião foi promovida pelo
novo Secretário do Tesouro, Timothy Geithner, anteriormente presidente da
Reserva Federal de Nova Iorque e um dos poucos defensores dos banqueiros de
Wall-Street aquando da crise financeira. Porquê? Porquê esta mudança? Confrontado
com a crise económica que grassava nos EUA e a necessidade imperiosa de uma
retoma económica, Obama sabia e foi-lhe feito saber que tal retoma e
recuperação não seriam possíveis sem um sector financeiro forte e saudável,
pelo que punir e ostracizar esse mesmo sector seria contraproducentes para a
pretendida retoma económica. Dividido entre fazer o deveria ser feito e o que
teria de ser feito, Obama optou pelo que teria de ser feito para que a economia
recuperasse, a sangria de empregos estancasse, e os trabalhadores
norte-americanos voltassem a conseguir pôr pão em cima da mesa das suas
famílias. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se por fazer o que deveria
ter sido feito.
- Guantanamo e o Terrorismo: o Barack Obama campanhista e idealista
prometeu encerrar a Prisão de Guantanamo, que considerava ser uma mancha no
rosto dos EUA, revelando que a luta contra o terrorismo não poderia ser feita a
qualquer custo e que se assim fosse, a batalha contra esse terrorismo estaria à
partida perdida, pelo simples facto que o Terrorismo conseguira comprometer e
corromper os valores, princípios e formas de actuação das sociedades
desenvolvidas. Já o Barack Obama presidente e pragmático não só não encerrou
Guantanamo como vai para a história como o grande impulsionador na utilização
de “drones”, licença para matar à distância, na luta contra o terrorismo.
Porquê? Porquê esta mudança? Ao Obama recto dos palanques de discurso, foram
entregues documentos que provavam A + B que os interrogatórios conduzidos em
Guantanamo providenciavam a recolha de informação que impossibilitava a
concretização de inúmeros atentados terroristas; foi ainda feito ver ao
presidente americano que a utilização maciça de “drones” seria a forma de
efectuar raides de combate ao terrorismo que menos casualidades humanas (“human
casualties”, mortes de humanos) provocaria. Sentado agora na Sala Oval, a
rectidão de Obama cedeu a uma curvatura de comprometimento com o que teria de
ser feito para salvar vidas humanas. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se
por fazer o que deveria ter sido feito.
Alexis Tsipras e a Crise Grega – mergulhada numa profunda Crise
Financeira, a Grécia, bastião pioneiro da democracia, via-se agora ostracizada,
humilhada e vilipendiada pelos seus “parceiros” europeus que desta exigiam medidas
atentatórias da dignidade humana em ordem a libertar fundos para satisfazer o
seu serviço de dívida, em grande parte respeitante a credores que são senão
grandes Entidades Financeiras responsáveis pelo início da crise que agora
assolava a Grécia. Fartos destes abomináveis insultos à sua dignidade, o povo
grego escolheu para seu líder o líder idealista do Syriza, Alexis Tsipras, que
prometera fazer frente ao “bullying” da União Europeia e a estes bater o pé. O
idealista Alexis Tsipras, já presidente, e fazendo jus ao legado democrático do
país que representa, marcou referendo para perguntar ao seu povo se deveriam ou
não assinar o acordo das instituições burocráticas ditadoras da austeridade
vivida na Europa, o que no fundo equivalia perguntar, face às reacções
chantagista e condicionadoras da União Europeia a este referendo, se os gregos
pretendiam ou não continuar na União Europeia. Contados os votos, mais de 60%
do povo grego corroborou o idealismo do seu líder e disse NÃO às pretensões
austeritárias da Europa. Pensou-se que seria desta que veríamos no cenário
político mundial o idealismo sobrepor-se ao pragmatismo; existia um líder idealista
de um partido idealista e com o apoio maioritário do seu povo…Desconfundamo-nos!
Depois de vários apelos ao seu pragmatismo, que incluiu, inclusive, um
telefonema do ex-idealista Barack Obama, Alexis Tsipras lá cedeu e na sua
cedência ao pragmatismo, mandou embora quem persistia no seu idealismo (vide Yanis
Varoufakis), convocou eleições antecipadas, reformulou o seu partido de extrema
para moderado e aplicou austeridade, a acordada e a não acordada? Porquê?
Porquê esta mudança? Ao idealista Alexis Tsipras foi feito ver o que a não
aceitação das condições de resgate acarretaria para o povo grego; a saída da
União Europeia e o fim do apoio encapotado Banco Central Europeu significariam
o colapso o sector financeiro grego que degeneraria num colapso económico da
Grécia, que resultaria por seu lado na pobreza, na fome e na miséria do povo
grego e foi assim que o já pragmático Alexis Tsipras fez o que tinha de ser
feito. Fez-se o que tinha de ser feito, deixou-se por fazer o que deveria ter
sido feito.
Embora a adopção do pragmatismo em detrimento do idealismo
pareça ser, face aos exemplos supra referidos, inteiramente justificados,
dever-se-á olhar para o quadro maior que é a Obra do Capitalismo de Último
Reduto e não olhar somente para traços e esboços do mesmo, libertando-nos dos
grilhões desta lógica sequestradora e pragmática para assim com maior isenção
se poder apreciar se esta sobreposição do pragmatismo face ao idealismo é
realmente virtuosa ou viciosa. Para o fazer
dever-se-á perguntar que mundo é
este, que obra é esta que está ser pintada com pinceladas de pragmatismo? É uma
obra boa, agradável ou, ao invés, causa desconforto, insatisfação, é uma obra
má? A generalidade das pessoas, que não são tão parvas como se possa supor,
parece ter encontrado a resposta e a votação constante em candidatos que fazem
do idealismo a sua retórica é demonstração dessa resposta. O problema consiste
no facto desses candidatos idealistas, quando confrontados com a máquina
burocrática e tecnocrata do poder, se transformarem invariavelmente em líderes
pragmáticos.