quinta-feira, 26 de maio de 2016

A moral do absurdo

Todos os contos têm uma moral e como quem lê um conto sempre lhe acrescenta um ponto, dedicarei este texto a determinar e a precisar a moral do pseudo conto por mim publicado de título “A Escola e os Cães”. Chamemos-lhe uma declaração de intenção. Tentarei desta vez ser o mais frontal e directo possível e evitar devaneios líricos e recursos estilísticos que pela minha manifesta inabilidade literária possam deturpar a significância do conteúdo do que escrevo.

1º - Abomino com todas as minhas forças e com todo o fel que corre nas minhas vísceras o elitismo, snobismo e exclusivismo associados ao ensino privado. Considero o acesso à educação um dos mais sagrados e fundamentais direitos humanos e defenderei sempre um acesso à educação gratuito, inclusivo e universal, o qual apenas pode ser garantido pelo sector publico.
2º - No que aos contratos de associação com colégios privados concerne, sou de opinião até mais extremada e radical que aquela defendida pela moderação do governo actual e para mim, em zonas geográficas em que não existam escolas publicas mas educandos, ao invés de se subsidiarem colégios privados sou da opinião que se deveriam construir escolas publicas de raiz pelo que, na minha opinião, a subsidiarização de colégios privados deveria cessar por completo e canalizados os recursos estatais na garantia de uma escola publica abrangente de toda a população dela necessitada, cada vez mais gratuita e de maior qualidade.

3º - A adjectivação usada relativamente à escola pública é feita na perspectiva do protagonista do conto (o Martim Maria de Vasconcellos), de forma a enfatizar e exacerbar a perspectiva preconceituosa, deturpada, altiva, elitista e snob que os filhos mimados dos colégios privados detêm sobre a escola pública, a qual é uma perspectiva diametralmente antagónica à minha, o autor do conto.
4º - Ao invés do 3º ponto, a adjectivação usada referente ao ensino privado (“escola de fidalgos”, “clube privado”, “Nossa Senhora dos Favorecidos” …) é feita numa perspectiva de narração, pertencendo por isso ao seu autor e neste caso reflectindo, de facto, o desdém e aversão que eu nutro pela cultura do ensino privado.
5º - A inscrição do cão de Martim Maria de Vasconcellos na escola pública é o culminar do absurdo de dois temas que dominaram o debate político nacional nos recentes tempos, nomeadamente a questão da subsidiarização de colégios privados e as propostas defensoras do estatuto de animal apresentadas pelo PAN.
6º - As vaias a um Governo que corta nos subsídios a colégios privados quando na escola pública falta leite para o pequeno almoço e a frivolidade da discussão do estatuto e direitos dos animais quando crianças passam fome são sintomáticas de um processo de desumanização que Franz Kafka descreveu e caracterizou como ninguém, e daí a citação da frase de abertura de "Metamorfose".   


“A vida está cheia de uma infinidade de absurdos que nem sequer precisam de parecer verosímeis porque são verdadeiros.” (Luigi Pirandello)     

sábado, 21 de maio de 2016

A Escola e os Cães – um possível conto do absurdo

Martim Maria de Vasconcellos era um menino de doze anos, que como todos os meninos da sua idade gostava de brincar mas que, como apenas alguns petizes, gostava também de ir à escola. O estranho motivo do gosto de Martim pela escola emanava no facto desta se constituir num colégio privado de meninos de bem, onde a sua turma era composta somente pelos seus 10 amigos de infância, todos eles primogénitos e herdeiros de apelidos amicíssimos da família de Vasconcellos; contribuía também para esta apetência de Martim Maria pela escola o facto de nesta os professores tratarem todos os educandos como pequenos príncipes e todas as necessidades pedagógicas e lúdicas dos pequenos de três nomes serem imediata e plenamente respondidas e satisfeitas por este diligente e capaz colégio, que era 3º nos rankings das melhores escolas do país. Contribuía também para a preferência de Martim em ir à escola o facto de nesta apenas coexistir com as moçoilas da sua idade que eram as mais bonitas da região, as mais bem ataviadas com as roupas mais caras e sempre em concordância com o dress-code catolicista vigente na sua escola, algo louvável aos olhos evangelizados de Martim; Martim Maria não teria assim de ofender os seus pequenos olhos com as meninas desgrenhadas e mal-arranjadas dos bairros da periferia, que se amontoavam em turmas mistas de trinta na escola publica, onde o rácio de 1 funcionário por 1000 alunos não conseguia satisfazer as necessidades da forma diligente que as escolas privadas com um rácio de 1 funcionário para 10 alunos conseguiam atingir, e que as fazia afundar nos rankings das escolas e serem mal vistas e desapreciadas por uma larga maioria da sociedade.

Neste dia, um dia futuro a que o conto se reporta, Martim Maria de Vasconcellos encontra-se inconsolável, de profunda tristeza como nunca antes tinha sentido. Forças externas à sua vontade fizeram com que muitos dos seus amigos de infância passassem a deixar de frequentar o clube de pequenos fidalgos a que chamam de colégio e tivessem de ser transferidos para a escola pública, numa óbvia condenação ao analfabetismo e ao insucesso escolar. De acordo com as notícias publicadas pelo jornal do pai do amigo de Martim, Vicente Francisco de Mello, “o governo nacional, numa ultrajante medida motivada por pura quezília ideológica, cortou nos subsídios aos colégios privados obrigando-os a cortarem no número de turmas a leccionar, que, como todos sabem, não pode exceder os 10 alunos sob pena de comprometer a qualidade do ensino praticada e os sacro rankings da educação”. A debandada de muitos dos seus amigos de infância significa, neste dia, para Martim, uma perda irreparável e um dano insanável ao seu gosto e apetência pela escola, ela que ao deixar de ter muitos dos seus amigos favoritos, distanciara-se daquela imagem idílica de clube privado que o papá e a mamã de Martim tanto se esforçavam por manter.

Neste dia, neste exacto dia, Martim Maria de Vasconcellos, lacrimoso de lágrimas impotentes perante este autoritário Estado de coisas, caminha com um dos seus mais queridos amigos rumo à nova escola deste; Martim, como bom amigo, acompanha o amigo neste seu primeiro dia de escola pública, seguindo depois para a sua querida escola de sempre, ele que continuava na 3ª melhor escola do país. Chegados às imediações da nova escola do amigo, o estado lacrimoso do pequeno Martim Maria de Vasconcellos irrompeu num choro convulso de infinita piedade e compaixão pelo seu querido amigo…Martim reparara naqueles que seriam os próximos companheiros de aprendizagem e de brincadeiras do seu condenado amigo; neles se contavam os filhos de vários empregados fabris da empresa industrial do pai de Martim (empresa que se dedicava à exportação de papel, com mercado preferencial no Panamá), o filho mais novo da Maria, a empregada doméstica da casa de Martim, e até a filha da senhora que o pai de Martim apelidava, sempre que a avistava, de má-vida. Martim chorava e foi choroso que se dirigiu ao contínuo da pulguenta escola e perguntou onde se poderia registar o seu amigo que vinha para esta escola no âmbito do processo de encerramento de turmas do Colégio da Nossa Senhora dos Favorecidos. Chegados à Secretaria da Escola E.B. 2/3 dos Ranhosos e Piolhosos, e questionado pela gorda senhora que lá habitava uma poltrona gasta e velha acerca do que pretendia, Martim Maria de Vasconcellos respondeu:
- Venho registar o meu cão na vossa escola!   



“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de insecto.” (Franz Kafka, em “Metamorfose”)

sábado, 7 de maio de 2016

A maldição da Língua Portuguesa

Nota ao Leitor – o presente texto não será escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico.


Não sou pessoa devota de particular religiosidade mas nutro em mim um sentido de divindade que à noção de “karma” se assemelhará; uma crença, não fundamentada racionalmente nem factualmente, de que a actos, atitudes e condutas adoptadas no presente corresponderão sempre, de forma mais ou menos tangível, as conformes consequências no futuro.

A 13 de maio de 2009 iniciou-se o período de transição do designado Acordo Ortográfico, que terminado em 2015 significou uma nova forma de escrever e falar o Português. Este acordo de mudança designa um claro abastardamento da língua portuguesa na sua submissão ignominiosa àqueles que não sendo os seus pais, são os que actualmente têm o capital e os recursos que a sustentam. Traduzindo para Português de Camões…Numa idiótica tentativa de aproximação ao
capital dos países mais ricos que português falam, o Estado português esboçou esta atrocidade de Acordo Ortográfico que almeja uma uniformização da língua portuguesa determinada e ditada pelas preguiçosas versões faladas e escritas no Brasil, Angola e Moçambique. Para que o capital destes países, tão ansiados em Portugal, se pudesse exprimir na sua plenitude capitalística, deixou-se de usar consoantes para abrir vogais e neste fecho da língua portuguesa à diversidade e peculiaridades que a enriquecem, agradou-se a quem essa diversidade não conseguia perceber, numa submissão de um dos maiores patrimónios nacionais (que é a sua Língua) ao primado financeiro, no que poderia ser descrito como mais uma manifestação cabal deste Capitalismo de Último Reduto que até à Língua Oficial de um país submete aos caprichos do seu capital de sequestro.

Evocando o preâmbulo deste texto, não posso deixar de sentir um certo regozijo ao analisar o estado actual dos principais protagonistas deste abastardamento e deste insulto à Língua Portuguesa, 7 anos depois de perpetrados. Vejamos…
- Brasil: em profunda crise económica decorrente da baixa dos preços de petróleo, também a sua língua nativa que é a corrupção sofreu com a mudança de humor do capital que a sustenta, e perante a escassez de recursos que passou a grassar nas suas carnavalescas elites, desnudaram-se (alguns/poucos) corruptos e num decrépito e folclórico episódio novelesco colocou-se o país à beira de uma grave crise social que, por tão obscena ser, nem com o recurso ao Português de Bocage se conseguiu definir, tendo ficado associado a um “inglesismo”, que tão típicos são no Brasil – IMPEACHMENT!
- Angola: também a braços com uma crise económica gerada pela baixa dos preços de petróleo, o portento económico africano temeu pela sua cleptocracia gravitante dos Santos, e numa humilhante demonstração de fraqueza pediu ajuda ao FMI, vendo agora as portas portuguesas para a Europa cosmopolita com que fantasiam cada vez mais estreitas.
- Moçambique: não só as contas foram escondidas em Moçambique e agora que foram descobertas as 1.600 milhões tensões escondidas entre Renamo e Frelimo, o país vive não só o perigo do colapso financeiro derivado do corte dos apoios da entidades internacionais de que depende umbilicalmente, como o Banco Mundial e mil e uma outras entidades internacionais de todo o tipo de fomento, como enfrenta também a ameaça real de uma guerra civil, sanguinária ao bom estilo africano.
- Portugal: decrépito e dependente das suas antigas colónias, o velho senhor feudal e esclavagista encarquilha-se agora, curvado em si mesmo, num canto da Europa tremendo e rezando para que os seus antigos súbditos não sucumbam às suas patologias crónicas e bombeiem sangue fresco (entenda-se capital financeiro) para este coração moribundo da Língua Portuguesa.

 “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego