Martim Maria de Vasconcellos era um menino de doze anos, que
como todos os meninos da sua idade gostava de brincar mas que, como apenas
alguns petizes, gostava também de ir à escola. O estranho motivo do gosto de
Martim pela escola emanava no facto desta se constituir num colégio privado de
meninos de bem, onde a sua turma era composta somente pelos seus 10 amigos de
infância, todos eles primogénitos e herdeiros de apelidos amicíssimos da
família de Vasconcellos; contribuía também para esta apetência de Martim Maria
pela escola o facto de nesta os professores tratarem todos os educandos como
pequenos príncipes e todas as necessidades pedagógicas e lúdicas dos pequenos
de três nomes serem imediata e plenamente respondidas e satisfeitas por este
diligente e capaz colégio, que era 3º nos rankings das melhores escolas do
país. Contribuía também para a preferência de Martim em ir à escola o facto de
nesta apenas coexistir com as moçoilas da sua idade que eram as mais bonitas da
região, as mais bem ataviadas com as roupas mais caras e sempre em concordância
com o dress-code catolicista vigente na sua escola, algo louvável aos olhos
evangelizados de Martim; Martim Maria não teria assim de ofender os seus
pequenos olhos com as meninas desgrenhadas e mal-arranjadas dos bairros da periferia,
que se amontoavam em turmas mistas de trinta na escola publica, onde o rácio de
1 funcionário por 1000 alunos não conseguia satisfazer as necessidades da forma
diligente que as escolas privadas com um rácio de 1 funcionário para 10 alunos
conseguiam atingir, e que as fazia afundar nos rankings das escolas e serem mal
vistas e desapreciadas por uma larga maioria da sociedade.
Neste dia, um dia futuro a que o conto se reporta, Martim
Maria de Vasconcellos encontra-se inconsolável, de profunda tristeza como nunca
antes tinha sentido. Forças externas à sua vontade fizeram com que muitos dos
seus amigos de infância passassem a deixar de frequentar o clube de pequenos
fidalgos a que chamam de colégio e tivessem de ser transferidos para a escola pública,
numa óbvia condenação ao analfabetismo e ao insucesso escolar. De acordo com as
notícias publicadas pelo jornal do pai do amigo de Martim, Vicente Francisco de
Mello, “o governo nacional, numa ultrajante medida motivada por pura quezília ideológica,
cortou nos subsídios aos colégios privados obrigando-os a cortarem no número de
turmas a leccionar, que, como todos sabem, não pode exceder os 10 alunos sob
pena de comprometer a qualidade do ensino praticada e os sacro rankings da educação”.
A debandada de muitos dos seus amigos de infância significa, neste dia, para
Martim, uma perda irreparável e um dano insanável ao seu gosto e apetência pela
escola, ela que ao deixar de ter muitos dos seus amigos favoritos,
distanciara-se daquela imagem idílica de clube privado que o papá e a mamã de
Martim tanto se esforçavam por manter.
Neste dia, neste exacto dia, Martim Maria de Vasconcellos,
lacrimoso de lágrimas impotentes perante este autoritário Estado de coisas,
caminha com um dos seus mais queridos amigos rumo à nova escola deste; Martim,
como bom amigo, acompanha o amigo neste seu primeiro dia de escola pública,
seguindo depois para a sua querida escola de sempre, ele que continuava na 3ª
melhor escola do país. Chegados às imediações da nova escola do amigo, o estado
lacrimoso do pequeno Martim Maria de Vasconcellos irrompeu num choro convulso de
infinita piedade e compaixão pelo seu querido amigo…Martim reparara naqueles
que seriam os próximos companheiros de aprendizagem e de brincadeiras do seu
condenado amigo; neles se contavam os filhos de vários empregados fabris da
empresa industrial do pai de Martim (empresa que se dedicava à exportação de
papel, com mercado preferencial no Panamá), o filho mais novo da Maria, a
empregada doméstica da casa de Martim, e até a filha da senhora que o pai de
Martim apelidava, sempre que a avistava, de má-vida. Martim chorava e foi
choroso que se dirigiu ao contínuo da pulguenta escola e perguntou onde se
poderia registar o seu amigo que vinha para esta escola no âmbito do processo
de encerramento de turmas do Colégio da Nossa Senhora dos Favorecidos. Chegados
à Secretaria da Escola E.B. 2/3 dos Ranhosos e Piolhosos, e questionado pela
gorda senhora que lá habitava uma poltrona gasta e velha acerca do que
pretendia, Martim Maria de Vasconcellos respondeu:
- Venho registar o meu cão na vossa escola!
“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho
agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de
insecto.” (Franz Kafka, em “Metamorfose”)
Sou filho da escola pública... Que posso mais dizer senão que uma muito aborrecida pulga me esta aqui e envenenar o juízo e não me deixa continuar.
ResponderEliminarVade retro satanás
Também eu o sou e nunca conheci outra escola que não a pública...e a mim a pulga que me incomoda é esta reivindicação mimada dos papás dos meninos dos colégios privados que querem o dinheiro publico para financiar clubes privados e a educação universal e não exclusiva deixá-la para os cães, que até personalidade jurídica já querem que tenham. Daí este conto do absurdo...em que espero que a minha ironia sobre o snobismo privado não seja interpretada de forma literal.
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