sábado, 30 de julho de 2016

Auschwitz XXI

No outro dia visitei Auschwitz.

Era uma quinta feira de manhã nebulosa quando a carrinha Mercedes preta de vidros esfumados parou junto ao hotel onde me hospedara para recolher os hóspedes deste interessados em nesse dia visitarem o antigo campo de concentração nazi. Tendo entrado quatro pessoas no dito veículo de marca germânica, dois casais de idade grisalha que se encontravam hospedados no Hotel” Kossak”, dirigi-me ao condutor do mesmo questionando-o se aquele seria o veículo que me conduziria a Auschwitz, ao que me respondeu que não, que dali seriam apenas quatro pessoas a transportar. Após consultar com a recepcionista do hotel e desta ter confrontado o motorista da carrinha, parecia que afinal eram cinco os hóspedes do Hotel “Kossak” a visitarem Auschwitz nesse dia. Foi então que o motorista do Mercedes, loiro de olhos claros com uma barbita imberbe de 4 dias, me convidou a sentar à frente, ao seu lado no lugar de passageiro, informando que faltaria somente passar por mais um hotel antes de rumarmos ao destino pago da nossa romaria. O carro estava já praticamente cheio de visitantes turistas de outros hotéis de Cracóvia. Tendo recolhido os últimos turistas a transportar o nosso guia automobilizado, inseriu no sistema audiovisual do automóvel um DVD com um documentário sobre Auschwitz. E foi assim, entre relatos de sobreviventes de Auschwitz entrecortados com gargalhadas do condutor que a meu lado amiúde ria e barafustava para o seu telemóvel, que cheguei a Auschwitz.

Chegado a Auschwitz, a quantidade de autocarros turísticos estacionados e a quantidade de máquinas fotográficas pendendo de pescoços escaldados de vermelhões típicos de turistas incautos, fez-me questionar se não estaria numa qualquer Disneylândia, uma Disneylândia negra e macabra, que atrai tanto como a colorida e alegre em Paris. Contornando a enorme fila para a entrada de Auschwitz I, afinal nós que pagámos uma visita com guia parecíamos ter mais direito a visitar o macabro do que os outros que desembolsaram menos Zlotys, fomos apresentados pelo nosso condutor àquela que seria a nossa guia para o dia, que nos ofereceu uns “phones” através dos quais, após colocados nos nossos ouvidos ávidos de turistas, poderíamos ouvir todas as indicações, explicações, contextualizações e peculiaridades com que a nossa guia nos guiaria por Auschwitz. Foi-nos explicado que este era Auschwitz I, o primeiro existente do enorme complexo de Auschwitz e o primeiro a ser usado e aproveitado pelos nazis para aprisionamento dos trabalhadores forçados que ali morreram ou trabalharam até morrer; a visita a Auschwitz II – Birkenau (o Auschwitz que estamos habituados a ver nas televisões e nos filmes da 2ª Guerra Mundial, e portanto a grande atracção turística de Auschwitz) ficaria para a parte da tarde. Por ora visitaríamos este complexo que fora o primeiros a ser usado para extermínio em massa de judeus, entre outros.

À entrada de Auschwitz I, somos agraciados com a placa de boas vindas onde se lê “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”). Ao longo dos vários edifícios protegidos por arame farpado electrificado vamos sendo confrontados com os vários episódios que compõem esta verdadeira narrativa do mal…Por entre o trabalho escravo, o tratamento desumano, as torturas e a matança em massa, jamais me esquecerei da fotografia de um menino de 2 anos alvo das experimentações do Dr. Josefe Mengele, também conhecido por Anjo da Morte ou Dr. Morte. Nessa foto, a criança, claramente desnutrida e maltratada, não grita, não berra nem se desfaz num esgar de dor…Não, essa criança limita-se a, com uma única lágrima vertida no seu rosto, olhar-nos numa contemplação onde revela o fim de tudo, esclarecendo-nos com o seu olhar a possibilidade infinita da maldade e crueldade humanas. Nessa mesma sala onde o olhar dessa criança “tratada” pelo Dr. Morte matou algo em mim que jamais conseguirei ressuscitar, encontrava-se em pessoa uma sobrevivente de Auschwitz; sentando-se ao lado de uma foto sua de quando tinha dez anos, explicou-nos aquela foto, dizendo que foi tirada pelo exército vermelho no dia seguinte à libertação e de como estes a tinham feito vestir o fato de prisioneira para as referidas fotos, mesmo referindo que as crianças não andavam vestidas como prisoneiras. Na foto, pousava com a sua irmã gémea (os alvos das experimentações do Anjo da Morte eram preferencialmente gémeos, dos quais o Dr. Mengele tentava apreender o segredo genético para a reprodução em massa, o qual replicados ao povo germânico, potenciaria a desejada repopulação avassaladora da raça ariana). Depois de contar alguns aspectos daqueles nove peculiares meses da sua infância, esta senhora octogenária surpreendeu ao revelar que tinha perdoado os nazis, mas que o havia feito por ela, não por eles…De seguida, e para gáudio de muitos dos turistas do macabro que comigo partilharam esta visita, encaminhámo-nos para a primeira câmara de gás a ser usada na matança em massa perpetrada pelos alemães da década de 40. Foi, a seguir à foto atrás mencionada, o segundo momento a me causar maior impressão nesta visita a Auschwitz; pisar aquele chão, aquele mesmo chão onde há cerca de 75 anos pessoas inocentes, alheias ao facto de ali estarem nuas com tanta outra gente, com os seus filhos bebés ao colo e olhar para cima e ver as aberturas por onde era libertado o infame gás, é uma sensação indescritível, uma azia e apatia sentimental que procura desesperadamente no relato que nos entra pelos ouvidos qualquer indício qualquer coisa que atenue aquele horror com que se é confrontado mas que nada encontra a não ser mais detalhes da ilustração da fealdade humana. À saída do referido campo de gás, é-nos impossível não regozijar quando a guia indica que ali, mesmo à frente do campo que tanta gente matou, foi enforcado após condenado o primeiro governador de Auschwitz Rudolf Höß.

Terminada a primeira parta da visita, era agora hora de rumar à nossa carrinha que nos transportaria para a segunda parta da visita, a grande atracção “Auschwitz II – Birkenau”. Antes, tive tempo ainda para engolir o meu almoço, um cachorro quente adquirido na barraca de Kebab á frente do hotel donde partira, prevenido que estava para os preços turísticos de Auschwitz.

Chegados a Birkenau, é impossível ficar indiferente à sua entrada icónica, com o portão guardado por vários pontos de vigília e ao lado a entrada para os comboios que de toda a Europa chegavam transportando condenados ao Holocausto. Na imensidão verdejante dos campos que compõem Auschwitz II (é vinte vezes maior que Auschwitz I), foi-nos explicada a velha eficiência alemã: os comboios chegavam e paravam a meio do ferrovia inserida no complexo, sendo aí efectuada a imediata triagem dos que, estando em condições para trabalhar seguiam para os seus “aposentos” e dos que, não estando em condições para trabalhar, maioritariamente crianças, mulheres e idosos, percorriam o resto da ferrovia até ao fim daquelas planícies verdejantes para aí conhecerem o fim da sua viagem que se constituía nas câmaras de gás e respectivos crematórios onde as cinzas da memória queimam a história humana. Depois de visitar as ruínas das câmaras de gás e crematórios fomos convidados a conhecer um exemplo dos “aposentos” onde os aptos a trabalhar ansiavam para que os seus no fim da planície se encontrassem melhor do que estes. Estes “aposentos”, muitos deles originalmente construídos como estábulos para albergar até 40 cavalos das SS, serviam de alojamento para mais de 200 prisoneiros, que em estrados de 4m por 4m e com diferença de 1m para os estrados de cima e em baixo, repousavam, em grupos de 5, a força de trabalho de tantas empresas alemãs, muitas delas ainda hoje existentes, na altura florescentes e crescentes em pujança com tão afincada e dedicada mão-de-obra. Foi depois de visitar os aposentos dos habitantes de Birkenau que foi dada como terminada a visita; era hora de voltar ao nosso carro onde o nosso motorista nos esperava para nos levar aos nossos aposentos, que o fez num caminho de cerca de uma hora enquanto bebia uma cerveja em copo de plástico adquirida em Birkenau.


Chegado ao meu quarto de hotel, e enquanto digeria aquela visita, o cachorro no meu estômago latia por soltura. Sentado na latrina do hotel “Kossak”, tentava confortar-me dizendo de mim para mim que tal atrocidade ocorrera há mais de 70 anos e, apesar de historicamente tal não ser muito, vivemos hoje num mundo completamente diferente em que o acesso massificado à cultura de informação impedirá tais manifestações de maldade e crueldade voltar a ocorrer. Mais reconfortado, puxei do meu Smartphone, onde na minha app do “Publico” li que o ministro das finanças alemão Wolfgang Schauble pedia a aplicação de sanções a Portugal e adivinhava novos pedidos de resgate para Portugal, numa tentativa de condicionar a condução da política nacional interna, no que apenas pode ser descrito como uma diplomacia abusiva e invasiva da soberania nacional; numa notícia logo abaixo fui confrontado com as declarações do cada vez mais popular candidato a líder do mundo livre, Donald Trump, nas quais o homem laranja da peruca loira prometia construir um muro ao longo de toda a fronteira com o México e garantia que faria os mexicanos pagar por esse mesmo muro. Percorrendo a página do Público, li como um homem, supostamente ligado ao terrorismo DAESH, se lançou com um camião numa imensa multidão em Nice, matando e trucidando indiscriminadamente. Li ainda como um outro homem, rapaz de 19 anos, entrou num comboio na Alemanha com um machado e começou a atacar para matar os seus passageiros. Ainda na Alemanha, em Munique, constava numa notícia paralela à anterior, um ataque terrorista a um centro comercial tirara a vida a nove pessoas. De volta a França, li como homens invadiram uma igreja na Normandia, fizeram cinco reféns incluindo um padre de 84 anos, que obrigaram a ajoelhar-se para depois o degolarem.

Cansado das notícias do macabro, decidi consultar um artigo de opinião; nesse artigo, o seu autor argumentava, sustentando esse argumentário empiricamente, que uma das principais consequências do terrorismo islâmico na Europa passará por um crescimento das forças políticas de extrema-direita, simpatizantes dos ideias xenófobos e racistas em que se alicerçou a construção de Auschwitz.

Depois de percorrer os meus olhos pela actualidade, eles que cansados estavam da visita desse dia ao passado macabro, não só os despojos vadios da minha tripa se perderam num esgoto de Cracóvia, com eles foi também esvaziado de mim o falso senso de conforto com que tentava superar Auschwitz.

 “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.”, George Santayana, pseudónimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás  

1 comentário:

  1. Parabéns Sandro Morgado pela excelente Narrativa, da tua visita a Auschwitz, local que um dia gostaria de visitar.

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