Já defendi, em textos anteriores, o que julgo ser a
necessidade de intercalar a típica abordagem financeira e economicista a
fenómenos da nossa realidade com uma abordagem filosófica e humanista; referi
essa necessidade quando abordei as questões do Terrorismo e dos Refugiados. E é
no âmbito dessa crença que hoje, para vos falar novamente de Refugiados e
Terrorismo, me auxiliarei, não de um economista ou de um politólogo mas de um
argumentista de televisão, Vince Gilligan, criador da minha série favorita “Breaking
Bad”.
Em “Breaking Bad”, Vince Gilligan conta-nos a história de um
professor de Química do Secundário, de meia-idade a quem é diagnosticado cancro
de pulmão, inoperável e com uma validade de 2 anos. Walter White, o professor,
é pai de um adolescente de 15 anos com doença de Paralisia de Bell e
encontra-se a aguardar um segundo filho, uma menina que se chamará Holly, e que
não conhecerá o pai por mais de 2 anos. Com um seguro de saúde miserável, num
país que não sabe o que é o Serviço Nacional de Saúde, Walter White é forçado
pela esposa grávida a aceitar uma plano de tratamento melhor mas que não é
coberto pelo seu seguro de professor. Mesmo trabalhando horas extra numa
oficina de lavagem de carros onde, para escárnio adolescente, lava os CHEVROLET
dos seus alunos, Walter White não consegue reunir os fundos para pagar o
tratamento de qualidade que a sua mulher o obriga a atender. Não só isso mas
sente ainda estar a consumir, inutilmente, recursos que deveriam ser aplicados
no futuro dos filhos que deixará órfãos. A esposa pede para que o seu marido
aceite a ajuda oferecida por ex-colegas de faculdade que fizeram fortuna com
empresas de investigação química e para quem pagar um tratamento oncológico de
top seria uma mera ninharia, afinal no mundo em que vivemos é de incomparável
mais-valia quem investe capital financeiro numa empresa do que quem investe
capital humano na educação e formação dos homens e mulheres de amanhã. Estranha
hierarquização de valores esta…E é também por causa desta hierarquia de valores
que vigora neste mundo nosso, a que chamamos desenvolvido, que Walter White
preferirá a alternativa á solidariedade e à compaixão ofertadas e enveredará
pela via solitária, orgulhosa e egotística da auto-suficiência. É que o
individualismo “smithiano” não impacta somente na organização socio-económica
da sociedade, ele deturpa e distorce os valores e princípios em que essa mesma
sociedade se substancia e entre os sentimentos de piedade e compaixão e os de
repulsa e ódio, o indivíduo contemporâneo optará, regra geral, ser alvo dos
segundos. Assim aconteceu com Walter White, estereotipo do homem actual, que ao
invés de aceitar a generosidade e caridade dos seus amigos de faculdade com
mais sucesso individual do que ele, optou, para fazer face às circunstâncias da
sua vida, por “cozinhar” metanfetaminas e tornar-se traficante de droga; preferiu
a repulsa e o ódio à compaixão e piedade. E é enquanto barão da droga que
Walter White não só ganhará o dinheiro suficiente para o seu tratamento
oncológico como em dois anos de vida criminosa ganhará o suficiente para
garantir o futuro financeiro dos seus filhos, algo que não conseguiria com uma
vida inteira e leccionar química numa escola secundária…É a vender droga que
mata e traz miséria e a matar mesmo que experiencia comportamentos de respeito
e reverência à sua pessoa quando até então, enquanto mero professor de
secundário, o máximo a que aspirara fora à condescendência dos outros. Walter
White transforma-se, sob a força das circunstâncias da sua vida e sob a circunstância
dos valores e princípios que é o mundo actual, num traficante de droga, homicida
e criminoso e nós, espectadores deste mundo actual, compreendemos, empatizamos
e vangloriamos até essa transformação. Fazemo-lo porque compreendemos a
motivação circunstancial que lhe antecede e sob esta tabela de valores que
vigora nesta Babel capitalista, quem pode não sentir que faria o mesmo que
Walter White fez? Com um filho de 15 anos, uma bebé a caminho, diagnosticado cancro
e dois anos mais de vida, quem não compreende a opção por um caminho destrutivo
de revolta auto-suficiência e afirmação individualista? Todos nós o
compreendemos e nos identificamos com ele e com as suas escolhas, e daí também
o sucesso retumbante da série televisiva…
Mas este é um espaço de debate político e não crítica
televisiva. Extrapolando então para a nossa realidade política e incidindo
sobre o fenómeno de resolução política que julgo ser o mais premente da actualidade,
qual o contributo de Vince Gilligan para a questão e crise dos refugiados. O
seu contributo consiste em ter conseguido, na sua série “Braking Bad”,
estabelecer, magistralmente, um nexo de causalidade entre as circunstâncias do
homem actual e o seu comportamento e quando pensamos nos refugiados e aplicamos
esse nexo de causalidade, somos forçados a perguntar: O que farão estas crianças,
que não morrendo com as balas na Síria nem afogadas no mar Egeu, são atiradas
para campos de miséria onde em condições desumanas são forçadas e definhar por
terem ousado fugir da guerra? O que acontecerá a estas crianças que se vêem
forçadas a prostituir para fugir destes campos refugiados do humanismo? A opção
por uma via de revolta auto-suficiência ao invés da piedade dos seus carrascos,
parece-me uma resposta óbvia e para a grande maioria delas a via da afirmação
do seu individualismo, destratado e espezinhado enquanto crianças, esgotar-se-á
na sua opção pelo terrorismo, cujos sentimentos de ódio e repulsa preferirão
aos de piedade e compaixão daqueles a quem nunca esquecerão o desprezo e
indiferença de quando eram frágeis e vulneráveis. Pergunto com quantas destas
crianças quando, daqui a 15/20 anos fizerem explodir um centro comercial e ou
ignitarem uma bomba numa qualquer estação de metro europeia, nós nos empatizaremos?
Com quantos delas nos identificaremos? Quantas delas vangloriaremos quando
passarem nos noticiários as consequências macabras das circunstâncias das suas
vidas nesta circunstância que é o mundo actual? Sou levado a crer que os
futuros eventuais autores desses atentados terroristas não terão a sua cara
estampada em tantas t-shirts ou canecas de café como Heisenberg, a não ser que
algum realizador de cinema se lembre de recriar no grande ecrã das salas de cinema
as circunstâncias das suas vidas, esquecidas nos pequenos ecrãs dos noticiários
das nossas salas de estar.
Nota positiva ao nosso primeiro-ministro, que levou para a
Cimeira da periferia (convidado por Alexis Tsipras), propostas de medidas e
políticas para a integração não só humanitária mas humana dos refugiados.
Poderia ter escolhido uma miríade de temas e um sem fim de propostas a levar a
debate neste pequenos concílio…Talvez medidas anti-austeritárias que afectam
sobretudo os países a participar nesta reunião…Mas não, optou por levar
propostas para a integração dos refugiados e ao fazê-lo define claramente o que
para ele deverá ser a prioridade da actuação política, que entre uma crise
financeira e uma crise humana deverá recair primeiramente sobra a que afecta a
humanidade de milhões de pessoas. Com isso identifico-me, empatizo e vanglorio!
“Chemistry
is the study of matter but I prefer to see it as the study o change…”, Walter
White, Breaking Bad
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